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Adão e Eva no país do cinema

Organizando um jogo de espelhos entre a ficção e o espetador, Campo de Sangue é um dos filmes mais admiráveis do cinema português dos últimos anos.

Longe do paraíso: Carloto Cotta é "Ele", o homem sem nome.  © D.R.

Eis um fenómeno raro no cinema português: um filme que sabe dar aos seus intérpretes o espaço e o tempo necessários para que cada personagem se instale na nossa visão - e no nosso pensamento - como um ser singular, impossível de reduzir a qualquer modelo previsível ou apaziguador. Carloto Cotta é mesmo a presença de um nome ausente, um "Ele" que João Mário Grilo filma como um Adão sem Eva, perdido no espetáculo de uma solidão suavemente literária.

Observem-se as quatro mulheres de Campo de Sangue: Sara Carinhas, a "rapariga bonita", já como tal identificada no romance de Dulce Maria Cardoso, dir-se-ia quase invisível, assombrada pelo seu peso dramático; Teresa Madruga, a senhoria que podia ter saído de uma comédia dos anos 40 do século passado, ainda que, por uma espécie de pudor, resistindo ao seu potencial cómico; Fernanda Neves, a mãe ideal de qualquer conto moral sobre os poderes do feminino, perdida na própria perdição do tempo, quase patética, mas, por fim, grandiosa; enfim, Suzana Borges, com o nome redentor de Eva, por certo confirmando a mitologia bíblica, ao mesmo tempo decompondo-a através de uma pose "neutra", tecida de elegância - o "neutro", como dizia Roland Barthes, é justamente aquilo que desafia o paradigma, no limite denunciando o estereótipo (aqui o estereótipo novelesco que todas estas personagens evocam para melhor o queimarem no fogo da ficção).

Enfim, como n"Os Três Mosqueteiros, há mais uma personagem que confirma e relativiza a perfeição do conjunto: as quatro mulheres nucleares do filme são, de facto, cinco, já que não nos podemos esquecer de Dulce, a escritora transformada em personagem que "Ele" visita. Luísa Cruz compõe-na num torpor que resiste a ser decifrado, bastando-lhe o discreto esplendor de estar ali (dentro do filme, entenda-se) - é, afinal, uma duplicação cinéfila da pose cool que João Mário Grilo reconhece na autora do romance inspirador, Dulce Maria Cardoso.

Por certo um dos filmes mais admiráveis que o cinema português gerou nos últimos anos, Campo de Sangue é um jogo de espelhos sobre a própria arte de procurar a verdade do mundo através do artifício da ficção. Ou ainda: o rigoroso contrário dos empreendimentos que se refugiam na "importância" ou na "gravidade" dos seus "temas", reduzindo o cinema à mais banal retórica televisiva. O que aqui mais conta é o filme como acontecimento. De que falamos quando falamos de acontecimento? Desse poder ancestral de o ecrã devolver ao espectador a sua própria condição de explorador da estranheza do mundo. Com uma alegria que nos faz bem.


por João Lopes in Diário de Notícias | 21 de junho de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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