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António da Cunha Telles. O valor de um legado cinéfilo

António da Cunha Telles faleceu aos 87 anos de idade, deixando uma herança que envolve produção, realização, distribuição e exibição. Realizador de um filme lendário, O Cerco (1970), desempenhou um papel decisivo na eclosão do Cinema Novo português.

© Arquivo DN

Com a morte de António da Cunha Telles - na noite de quarta-feira, num hospital de Lisboa, aos 87 anos, vítima de cancro -, há todo um capítulo do cinema português que encontra o seu encerramento simbólico. Isto porque podemos dizer, sem qualquer ampliação mitológica, que sem a sua visão e o seu trabalho o Cinema Novo português não teria existido.

Bastará recordar alguns títulos exemplares dessa "nova vaga" vivida em Portugal a partir de uma fundamental inspiração francesa: Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, descobrindo a respiração melodramática das "avenidas novas" de Lisboa; Belarmino (1964), de Fernando Lopes, sobre o pugilista Belarmino Fragoso e o seu destino amargo, demasiado português; ou ainda Domingo à Tarde (1966), de António de Macedo, uma reinvenção formal da dramaturgia do romance de Fernando Namora.

São títulos com chancela de produção de Cunha Telles, todos eles marcados pela vontade de fazer um cinema realmente inovador, distante de qualquer conformismo academista. Para ele, tratava-se de pôr em prática, em tom português, as lições criativas (também de produção, claro) dos autores da "Nouvelle Vague" e, mais especificamente, os seus estudos, em Paris, no lendário instituto de estudos cinematográficos que era o IDHEC (atual Fémis), de onde saíra, em 1961, com um diploma em realização.

Nascido no Funchal, a 26 de fevereiro de 1935, Cunha Telles chegou a frequentar o curso de Medicina, na Universidade de Lisboa, desistindo para começar a sua aventura francesa. Quando regressou, a sua atividade começou de imediato a envolver o cinema, tendo realizado a curta-metragem Os Transportes (1962), encomendada pela Direcção-Geral do Ensino Primário, entidade cujos Serviços de Cinema chegou a dirigir. Foi também coordenador do jornal de atualidades Imagens de Portugal e orientou cursos de cinema na Mocidade Portuguesa.

Produtor e co-produtor
Desde muito cedo, a sua estratégia passou pela criação de laços com entidades estrangeiras. Assim, em 1964, como co-produtor, o seu nome surgiu ligado a um dos primeiros títulos de François Truffaut, La Peau Douce (título português: Angústia), em parte rodado em Lisboa, com Françoise Dorléac e Jean Desailly. Produziu também As Ilhas Encantadas (1965), de Carlos Vilardebó, filme indissociável da internacionalização de Amália Rodrigues, aqui a contracenar com Pierre Vaneck e Pierre Clémenti.


Em 1970, acabaria por criar aquele que ficou como um dos momentos mais lendários de toda a história do cinema português. Assim, passando às longas-metragens, realiza O Cerco, um fenómeno invulgar de empatia com muitos espectadores, de algum modo refletindo dúvidas e ansiedades transversais à sociedade portuguesa. A "mensageira" do olhar de Cunha Telles é Marta, uma jovem de vinte e poucos anos, que depois de se separar do marido tenta encontrar o seu próprio destino num universo de relações nem sempre transparentes, marcado por formas mais ou menos perversas de poder masculino... Do impacto do filme é indissociável a atriz principal, Maria Cabral, presença efémera, mas também ela lendária, na iconografia portuguesa do cinema.

A dimensão intimista, por vezes confessional, do seu cinema ganhará especial importância em títulos como Meus Amigos (1974) e Vidas (1983), pontualmente derivando para o documentarismo, como aconteceu em Continuar a Viver (1977), sobre o processo de construção de novas casas, em 1975-76, para os pescadores da Meia Praia, em Lagos. Ao mesmo tempo, Cunha Telles continuou ligado à produção de dezenas de títulos de cinema e televisão, portugueses ou não, incluindo Saudades para Dona Genciana (1984), de Eduardo Geada, Balada da Praia dos Cães (1986), de José Fonseca e Costa, O Amante Magnífico (1986), de Aline Isserman, O Fio do Horizonte (1993), de Fernando Lopes, e Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas. Sem esquecer que foi co-produtor de Belle Époque (1992), de Fernando Trueba, vencedor do Óscar de melhor filme estrangeiro em representação da Espanha.

Cinema Universal
Nos tempos heróicos das chamadas salas de "arte e ensaio", sobretudo ao longo da década de 1970, Cunha Telles foi uma das figuras pioneiras na abertura do mercado português a várias frentes da modernidade cinematográfica. Ao criar a distribuidora Animatógrafo, construiu um catálogo de títulos em que os mestres clássicos - por exemplo, Sergei Eisenstein e Jean Vigo - coexistiram com autores emblemáticos do cinema moderno, do brasileiro Glauber Rocha ao japonês Nagisa Oshima, passando pelo suíço Alain Tanner, o canadiano Gilles Carle ou o chileno Miguel Littín.


Para consolidar a sua estratégia, Cunha Telles lançou-se também na exibição, promovendo, em Lisboa, a reabertura do antigo Cinema Bélgica, na rua da Beneficência, desta vez com a designação de Universal - o primeiro título estreado, a 12 de outubro de 1974, foi Sambizanga, de Sarah Maldoror. Apesar da brevidade da sua gestão (encerrou em 1977), o Universal ficou como um dos modelos de uma lógica de exibição independente cuja herança persiste.

Há uma dimensão visceralmente cinéfila e, é caso para dizê-lo, universal no legado de António da Cunha Telles: por um lado, procurando novas vias de produção; por outro lado, dando a conhecer a pluralidade geográfica e cultural do mundo do cinema. O seu último filme estreado é Kiss Me (2004); deixa inédito Cherchez la Femme, inspirado em Mário de Sá-Carneiro.


por João Lopes in Diário de Notícias | 25 de novembro de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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