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Cultura

O OUTRO LADO DA AMÉRICA NO CORREDOR DA MORTE, À BEIRA DO ABISMO

  FESTIVALO outro lado da América no corredor da morte, à beira do abismo



Em Into the Abyss Werner Herzog revela o outro lado da America, the beautiful
(Stephane de Sakutin/AFP)

Na abertura do IndieLisboa, nesta quinta-feira, Werner Herzog leva-nos ao lado escuro da América. Circunstâncias e consequências de um triplo assassínio: Into the Abyss não é para almas sensíveis.

Outubro de 2001, Conroe, 37 mil habitantes, a 64 quilómetros de Houston, no estado americano do Texas. Os adolescentes Michael Perry e Jason Burkett batem à porta da enfermeira Sandra Stotler, moradora num bairro residencial de condomínio fechado, para perguntar se os seus amigos Adam Stotler e Jeremy Richardson estavam em casa. Antes de a noite acabar, Sandra, Adam e Jeremy estarão mortos.

Perry e Burkett queriam convencer os amigos a irem todos dar uma volta no Chevrolet Camaro vermelho da enfermeira. Mas Adam e Jeremy não estavam em casa, e Perry e Burkett decidiram pôr em ação um plano B improvisado: roubar o carro. Enquanto Burkett batia à porta da frente, Perry entrou pela garagem e disparou à queima-roupa sobre Sandra. Embrulharam o corpo num lençol e foram desfazer-se dele a um lago próximo. Quando regressaram, viram-se fechados fora do condomínio. Ligaram para Adam e Jeremy alegando que um amigo estava em dificuldades. Mataram-nos em seguida para roubar o comando que dava entrada ao condomínio e roubaram o Camaro. Dois dias depois, foram presos após um tiroteio com a polícia local. Perry foi condenado à morte e Burkett a prisão perpétua.

Em 2010, o cineasta alemão Werner Herzog dispôs de meia hora para entrevistar cada um dos criminosos. Faltavam oito dias para Michael Perry ser executado. Herzog falou igualmente com a filha de Sandra Stotler, com o irmão de Jeremy Richardson, e com o pai e a mulher de Jason Burkett. Entrevistou padres, detetives, vizinhos, amigos, conhecidos. Através da sua investigação e do seu olhar sobre este crime, Werner Herzog revela uma América profunda de gente condenada a uma vida longe de ser a que sonhavam. O resultado pode ser visto hoje na abertura do IndieLisboa. Chama-se Into the Abyss: A Tale of Death, a Tale of Life. É um dos acontecimentos cinematográficos de 2012.

Werner Herzog não precisa de apresentações. Revelado na nova vaga do cinema alemão nos anos 1970, contemporâneo de Wim Wenders, Rainer Werner Fassbinder ou Volker Schlöndorff, Herzog tem prosseguido uma carreira singular que sempre fez questão em escapar a classificações simplistas, balizada por filmes emblemáticos como Aguirre, o Aventureiro (1972), Nosferatu – O Fantasma da Noite (1978) ou Fitzcarraldo (1982). Embora menos conhecida entre nós, a sua vertente de documentarista tem igual peso na sua carreira, funcionando como "desdobramento" temático e criativo das suas ficções fascinadas pelo lado escuro e obsessivo do ser humano. Grizzly Man (2005) e A Gruta dos Sonhos Perdidos (2010) chegaram às nossas salas, The Wild Blue Yonder (2005) e Encounters at the End of the World (2007) passaram em edições anteriores do IndieLisboa.

No corredor da morte

Into the Abyss nasceu de um projeto para o canal televisivo Discovery sobre a pena de morte nos EUA. A série daí resultante – On Death Row – teve estreia mundial no festival de Berlim deste ano antes da sua exibição no Investigation Discovery americano em março. Mas a história de Jason Burkett e Michael Perry perturbou Herzog de tal modo que se autonomizou.

Ao jornal The New York Times, aquando da estreia do filme no festival de Telluride em setembro último, o realizador disse "não estar no negócio da culpa nem no da inocência". Muito embora Herzog seja abertamente contra a pena de morte, Into the Abyss recusa tomar partido ou erguer bandeiras. É uma espécie de "CSI: Pena de Morte", traçando desapaixonadamente, de modo quase forense, circunstâncias e consequências do triplo assassínio de Conroe. Recorrendo a imagens de arquivo da investigação – que tornam o filme pouco aconselhável a almas sensíveis – entrecortadas com as entrevistas que ele próprio conduziu, Herzog transcende o mero documentário investigativo para explorar a dimensão humana de um crime que custou a vida a três pessoas por causa de um carro.

Do outro lado do sonho

Inevitavelmente, é da sociedade americana que aqui se fala, e dos seus contrastes exacerbados entre ricos e pobres. Michael Perry e Jason Burkett vinham de uma cultura de pobreza e analfabetismo, rodeados pelo crime, pelo álcool, pelas drogas como saídas acessíveis para uma existência sem futuro, enquanto Sandra e Adam moravam numa casa confortável numa zona residencial afluente. O pai de Jason Burkett, Delbert, é entrevistado por Herzog enquanto cumpre a quarta pena de prisão, agora perpétua, no mesmo estabelecimento prisional do filho e, perante a câmara, faz uma declaração espantosa: a sua consciência de que "we never had a chance". A sua família estava condenada por vir do "lado errado" da cidade.

A câmara de Herzog não faz outra coisa que não seja devolver a todos eles – criminosos e vítimas – a sua dignidade, a sua humanidade. Mas haverá dignidade, humanidade em gente capaz de matar a sangue-frio por causa de um carro?, perguntarão. A questão, para o cineasta alemão, nem se põe. Todos os seres humanos são dignos de respeito, por mais horríveis que sejam os seus atos. "Não tenho de gostar de si," diz Herzog a Perry ao iniciar a sua entrevista. "Mas respeito-o, porque você é um ser humano."

Esse respeito esconde-se no modo como a câmara de Peter Zeitlinger (habitual diretor de fotografia de Herzog) olha para estas pessoas. Um olhar que se inscreve todo na duração, no tempo e no espaço que permite a cada entrevistado revelar a sua humanidade, sem nunca tombar na facilidade ou na exploração gratuita da dor e do sofrimento. Aqui não há sensacionalismo, apenas uma câmara à altura de homem, mostrando o que há para mostrar, revelando o outro lado da America, the beautiful. É aí que este "conto de morte e de vida" se ganha como um dos mais perturbantes documentos do ano. Não deixa ninguém indiferente.

 
por Jorge Mourinha, in Público | 26 de abril de 2012


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Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.        


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