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Uma coleção à inglesa feita para mostrar poder

Novas exposições no Museu Gulbenkian a partir de duas coleções – a do fundador e a de uma família de aristocratas britânica.

Thomas Wentworth com o seu secretário, Anton van Dyck (c. 1639-40) [Cortesia: Colecção Wentworth-Fitzwilliam]

 

Grandes mestres e o “gosto inglês”. Com muito retrato.

Para entrar no espírito da nova exposição do Museu Gulbenkian é preciso imaginar uma típica casa de campo da aristocracia inglesa, no Yorkshire, com um ambiente ao género da que serve de cenário à série televisiva Downton Abbey, Highclere Castle. Portas pesadas, centenas de quartos, uma completa biblioteca, átrios grandiosos, salões carregados de tapeçarias e de reposteiros de veludo, pinturas espalhadas por toda a parte, de retratos de família a naturezas-mortas ou cenas de caça, e dezenas de empregados com funções específicas. Tudo funcionando com o rigor que se exige a um relógio suíço da melhor qualidade.

A propriedade a que nos referimos é Wentworth Woodhouse, a casa dos Wentworth- Fitzwilliam que, durante mais de 300 anos, guardou a grande colecção de arte que esta família tem vindo a reunir nos últimos quatro séculos, e da qual podem agora ver-se 56 obras em Lisboa. Deste conjunto, essencialmente retrato e paisagem, com um pequeno núcleo reservado aos temas religiosos e outro aos cavalos de George Stubbs, pinturas que raramente se vêem fora da Commonwealth tal é o apreço que lhe têm os ingleses, destacam-se nomes como Anton van Dyck, Canaletto, Claude Lorrain, Jan van Goyen, Quentin Massys, Joshua Reynolds, Hans Memling e Pieter de Hooch.

A coleção Wentworth- Fitzwilliam, hoje nas mãos de lady Juliet Tadgell, uma mulher que parece preferir obras de temática religiosa, naturezas-mortas e a pintura do Norte da Europa, só é exposta publicamente de dez em dez anos e já não está em Wentworth Woodhouse, casa que a família vendeu só em 1989, mas onde já não vivia desde finais da década de 1940. Por hábito decora o edifício principal da propriedade que esta descendente de Thomas Wentworth - o homem que no século XVII dá início a esta que é uma das mais importantes coleções privadas do Reino Unido -, mantém em Kent.

Aos 80 anos, esta colecionadora com um mestrado em Belas Artes pela Universidade de Oxford que passa temporadas em Lisboa na casa que comprou no Bairro Alto, continua a enriquecer o acervo, que ao longo dos séculos viu serem vendidas algumas das suas estrelas, entre elas obras de Caravaggio, Giorgio Vasari, Lorenzo Lotto e do próprio George Stubbs, com destaque para o monumental retrato de Whistlejacket, um famoso cavalo de corrida inglês de meados do século XVIII, que a National Gallery de Londres comprou em 1998. Whistlejacket aparece no catálogo de 1870, um volume raro, em que se faz o inventário da coleção, com reproduções das obras que inclui e detalhadas legendas.

“Stubbs retrata cavalos como quem retrata pessoas. Há neles uma intensidade, um propósito, que nos deixa adivinhar a sua personalidade”, diz ao Público Luísa Sampaio, a comissária de Wentworth-Fitzwilliam: Uma Coleção Inglesa (até 28 de Março), exposição que acaba de marcar a estreia da nova diretora do Museu Gulbenkian, a britânica Penelope Curtis, numa conferência de imprensa da fundação. Curtis chegou há dez semanas, mas já falou em português. E para dizer que a sua presença nesta dupla inauguração – abriu ao mesmo tempo na sala de temporárias do museu Calouste S. Gulbenkian e o Gosto Inglês, uma exposição que funciona em díptico com a da coleção de lady Tadgell – é uma “coincidência pura” (faz ainda parte da programação deixada pelo anterior diretor) e que isto do “gosto inglês” é coisa difícil de definir.

“O que aqui temos é uma coleção que nos permite contar um pouco da história de Inglaterra”, diz Luísa Sampaio, partindo de “homens de poder desta família importante da aristocracia”.

Van Dyck e o retrato

É precisamente com um retrato de Thomas Wentworth (1593-1641) que a exposição abre. Nele se vê este que é o 1.º conde de Strafford de corpo inteiro e armadura, com a mão direita sobre a cabeça de um cão, uma pintura que faz lembrar dois retratos do pintor veneziano Ticiano, um de Carlos V e o outro do ainda príncipe Filipe de Espanha, filho deste imperador e de Isabel de Portugal.  

Estadista temido e com muitos inimigos – chamavam-lhe Tom, o Tirano Negro, e acabou decapitado -, parlamentar influente e governador da Irlanda, é o homem a quem se deve o começo da coleção. Um começo auspicioso, já que Wentworth encomenda várias obras ao pintor da corte de Carlos I, o flamengo Anton van Dyck, um dos maiores retratistas da Europa do século XVII. Além do retrato com armadura,  a coleção inclui (encomendadas por ele ou não), outras pinturas deste artista do Norte, como aquela em que o conde aparece junto ao seu secretário ou a da rainha Henriqueta Maria em traje de caça, que terá o contributo de outros artistas do seu atelier.

É bem possível que Thomas Wentworth não tenha mandado retratar nenhuma das suas três mulheres, nem mesmo aquele que, segundo as crónicas, mais terá amado, Arabella. Sabe-se, no entanto, que mandou pintar um dos três filhos que com ela teve e que está agora em Lisboa, e que terá recebido de uma amante, Lucy, condessa de Carlisle, uma pintura em que ela aparece de corpo inteiro, também de Van Dyck.

“Todos estes retratos são de aparato, mandados fazer por alguém que tem consciência de que está a deixar obras para as gerações que se seguem”, acrescenta Luísa Sampaio, algo que, de certa forma, aproxima esta coleção da de Calouste Gulbenkian: “É uma coleção do presente, que fixa as figuras importantes da época e da família, mas é também do futuro, de alguém que sabe que o que deixou é importante e que, no caso dos Fitzwilliam, vai ser continuado.”

A quatro tempos

E assim foi. Luísa Sampaio identifica mais três grandes momentos nesta coleção centenária. O segundo fica a cargo de Charles Watson-Wentworth (1730-1782), 2.º marquês de Rockingham e duas vezes primeiro-ministro, político de ideias liberais, que apoiou a causa dos colonos, procurando pôr fim ao envolvimento britânico na guerra da independência americana. Também um apaixonado por escultura – na exposição há um busto seu da autoria de Joseph Nollekens – e por corridas de cavalos, Watson-Wentworth torna-se mecenas de George Stubbs, a quem o historiador de arte David Ekserdjian, especialista em pintura do Renascimento, se refere no texto do catálogo como um “talento profundamente britânico”.

“São obras de grande modernidade no recorte das figuras, com a profundidade a ser dada apenas pelas sombras dos cascos dos cavalos”, mostra a comissária, apontando para Éguas e Potros (1762).

William, 4.º conde de Fitzwilliam, herdou Wentworth Woodhouse e a coleção de arte do seu tio Charles. Liberal como ele, comprou para o acervo a paisagem do francês Claude Lorrain que agora se pode ver na exposição e fez questão de identificar grande parte das figuras que aparecem nas obras, à época ainda espalhadas por Wentworth Woodhouse.

O quarto e derradeiro “momento” que a comissária identifica é o atual, que se faz ao gosto de lady Juliet Tadgell, que comprou para a coleção obras como Cena de Interior (c. 1670-1675), de Pieter de Hooch, que, sem esforço, faz lembrar as atmosferas criadas pelo grande mestre da pintura de Delft, Johannes Vermeer. Juliet Tadgell é a única filha do 8.º conde de Fitzwilliam e Maud, a 7.ª condessa, presente na exposição num retrato de 1911, de Philip de Laszlo, em que surge com um vestido azul-alfazema, era sua avó. Wentworth Woodhouse, que hoje está à venda por oito milhões de libras mas que, dizem os jornais, precisa de obras a ultrapassar os 40 milhões, foi a casa onde passou a infância.

Nessa altura, anos 1930, provavelmente já não se distribuíam cestos de confetis aos convidados para que pudessem regressar ao seu quarto sem ajuda no final do serão. É que a casa dos avós de lady Tadgell tem duas vezes o tamanho do Palácio de Buckingham, qualquer coisa como oito quilómetros de corredores e mais de 300 quartos. Os confetis eram a solução numa altura em que não havia GPS.  

Só o melhor

Gulbenkian nunca viveu numa casa tão grande, mas as que escolheu em Paris e Londres estão intimamente ligadas ao ato de colecionar, explica João Carvalho Dias, comissário de Calouste S. Gulbenkian e o Gosto Inglês: “As casas que Gulbenkian compra não são apenas casas - são os contentores da coleção que começa a construir em 1898, quando compra o n.º 38 de Hyde Park Gardens, em Londres, que hoje já não existe.”

Whistlejacket e o seu Tratador com Dois Garanhões, de George Stubbs, 1762 [Cortesia: Coleção Wentworth-Fitzwilliam]

A pequena exposição, feita quase em exclusivo com obras das reservas do museu, junta muita documentação do arquivo britânico do colecionador de origem arménia e que está na génese do acervo permanente da fundação. Catálogos de exposições, exemplares de cartas trocadas com importantes historiadores de arte que o aconselhavam, biografias de pintores do Renascimento e outros volumes de referência que Gulbenkian encomendava para se documentar e até um pequeno livro de registo das pinturas compradas e vendidas entre 1898-1903 (há exemplos de obras de que se desfez rapidamente, por vezes com prejuízo).

“Como sempre, Gulbenkian é rigoroso e obsessivo quando algo lhe interessa. Temos aqui grandes livros da história de arte porque ele sentiu que precisava de aprender. Sabia muito sobre tapetes e moedas mas quase nada sobre pintura”, diz o conservador do museu, chamando a atenção para um volume em que, ao lado de uma ou outra reprodução dos grandes mestres, escreve em francês “vi” e para uma lista minuciosa das obras de arte e do mobiliário da casa de Londres, com o lugar exato que ocupavam.

Dois dos núcleos mais interessantes são os dedicados às exposições londrinas da Coleção Gulbenkian, sobre as quais faz curiosos álbuns de recorte de imprensa. Na National Gallery (1936-1950) mostra “o que de melhor tem em pintura”, com os jornais a classificarem-na como “fabulosa” e a destacarem retratos de Rubens e Rembrandt, e no Museu Britânico (1936-48) expõe as peças egípcias. “É uma embaixada de grande afirmação. É uma oportunidade que cria para proteger as obras da guerra – com a subida dos nazis ao poder em 1933 ele sabe que tê-las em Paris já não era seguro -, mas também para as legitimar e para mostrar que só colecionava o melhor”, acrescenta João Carvalho Dias.

Na exposição há uma reprodução que Gulbenkian encomenda da célebre Diana e Actéon, de Ticiano, cujo original está na National Gallery (NG) londrina. O colecionador teve oportunidade de comprar esta obra, que forma um díptico com Diana e Calisto – o primeiro foi adquirido por 50 milhões de libras em 2009 e o segundo por 45 milhões em 2012 - ao seu proprietário escocês, explicou o comissário, mas Kenneth Clark, antigo diretor da NG, não chegou sequer a insistir que fizesse negócio, dado o mau estado de conservação da obra. “Sabia que ele nunca a compraria.”

A exigência de qualidade marca a coleção dos Wentworth- Fitzwilliam e a de Gulbenkian. Ambas têm, aliás, sobretudo retrato e paisagem. Mas enquanto a primeira foi reunida ao longo de quatro séculos e resulta do esforço de vários, a segunda foi feita em 60 anos e reflete o gosto de apenas um. Calouste Gulbenkian também quis ter (pelo menos) um Van Dyck. E tem.

 


por Lucinda Canelas, in Público | 27 de novembro de 2015
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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