A Vida dos Livros
A "Utopia" de Thomas Morus
Traduzida por Aires do Nascimento e prefaciada por José Pina Martins (Fundação C. Gulbenkian, 2006), constitui uma obra referencial do humanismo europeu, cuja primeira edição foi dada à estampa há quinhentos anos.
A VIDA DOS LIVROS por Guilherme d'Oliveira Martins
De 25 a 31 de janeiro de 2016
UMA OBRA FUNDAMENTAL
Thomas More ou Tomás Morus, na fórmula latinizante, «Visconde e Cidadão de Londres, nobre cidade de Inglaterra», celebrizou-se pela publicação do discurso de um português ignoto, de nome Rafael Hitlodeu, sobre a melhor Constituição de uma República. Esse texto fundamental tem feito correr rios de tinta, sobretudo a partir do seu misterioso título - «Utopia». A etimologia grega remete-nos para uma designação contraditória que significa o que não existe ou não tem lugar… Esse discurso completa este ano exatamente cinco séculos desde que foi publicado e merece ainda uma especial atenção. Morus procurou apresentar uma sociedade que pudesse satisfazer a felicidade humana, no entanto a história da humanidade está cheia de exemplos de tentativas falhadas de realizar na prática esse generoso objetivo – sendo o século XX um momento especialmente dramático relativamente a tais sonhos que depressa se tornaram pesadelos. Também Platão na «República» procurou apresentar uma sociedade modelar e conhecemos muitos outros discursos com idênticos objetivos. O primado da virtude de um Savonarola e ou de um Saint Just deu lugar à tragédia ou ao terror. E as «distopias» de George Orwell («Mil Novecentos e Oitenta e Quatro») e de Aldous Huxley («O Admirável Mundo Novo»), para não falar de «Fahrenheit 451» de Ray Bradbury, deram, na literatura mais divulgada, a expressão do contraponto relativamente ao texto de Tomás Morus. E há pouco, pondo o dedo na ferida, Gonçalo M. Tavares veio dar conta de que a «Utopia» não é uma receita ou um modelo, a impor ou a seguir, mas um desígnio de perfectibilidade que é pedido a seres humanos imperfeitos que todos somos. «Quando o essencial das utopias humanas passa pela tecnologia talvez algo esteja em queda. É uma utopia desanimada, a que quer mudar a paisagem natural ou técnica, e já desistiu de mudar o humano» (Público, 8.1.16). No entanto, Tomás Morus escreveu a sua «Utopia» não para impor um caminho, mas para dizer que vale a pena prosseguir a luta pacífica pela dignidade humana «O que é mais raro e digno de interesse é uma sociedades sã e sabiamente organizada»...
HUMANISTA INFLUENTE
Tomás Morus (1478-1535) foi um dos humanistas mais destacados do Renascimento. Filho do juiz Sir John More e de Agnes Graunger, casou-se com Jane Colt, falecida prematuramente, de quem teve quatro filhos, e em segundas núpcias com Lady Alice Middleton, tendo sido Chanceler do Reino de Inglaterra de 1529 a 1532, no reinado de Henrique VIII. Pelas suas características pessoais, pela qualidade intelectual e pelo empenhamento cívico, impôs-se como exemplo reconhecido pelos seus contemporâneos. Foi advogado, deputado à Câmara dos Comuns, «speaker» da mesma Câmara, Vice-Tesoureiro e Chanceler do Ducado de Lancaster até chegar à primeira linha da governação. Amigo de Erasmo de Roterdão, que lhe dedicou o «Elogio da Loucura», este disse de Morus: «É um homem que vive com esmero a verdadeira piedade, sem a menor ponta de superstição, tem horas fixas em que dirige a Deus as suas orações, não com frases feitas, mas nascidas do mais fundo do seu coração. Quando conversa com os amigos sobre a vida futura, vê-se que fala com sinceridade e com as melhores esperanças. E assim é Morus também na Corte. Isto, para os que pensam que só há cristãos nos mosteiros». O conflito com Henrique VIII deveu-se à querela sobre a anulação do casamento do rei com Catarina de Aragão. Morus discordou da posição do monarca e demitiu-se de Chanceler – negando-se a dar o seu acordo à posição no sentido da cisão religiosa e da criação da Igreja de Inglaterra, liderada pelo próprio rei. Em consequência recusou-se a prestar juramento de fidelidade a Henrique VIII, segundo o Ato de Supremacia – o que determinou a sua prisão na Torre de Londres, com o cardeal e bispo de Rochester, John Fisher, o seu julgamento e consequente condenação à morte, que ocorreu em 6 de julho de 1534. As suas últimas palavras foram: «morro como bom servidor do rei, mas de Deus primeiro». Na história britânica esta execução é considerada das mais graves e injustas aplicadas pelo Estado, pelo facto de atingir um homem prestigiado e de honra.
CRÍTICO DO SEU TEMPO
Guilherme d'Oliveira Martins
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