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Sophia pela filha Sofia, Mário Soares, Gageiro e Frederico Lourenço

As comemorações do centenário da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, nascida a 6 de novembro de 1919, têm hoje um ponto alto com o Concerto Comemorativo no Teatro Nacional de São Carlos, em que será representada a ópera Orfeu e Eurídice, de Gluck.

A filha Sofia.© Orlando Almeida/Global Imagens


Não ficará por aí a evocação e a rede de bibliotecas de Lisboa vai também celebrar Sophia com várias iniciativas. Muito mais distante, inicia-se hoje em Macau um debate na Universidade de São José sobre a obra da poeta. A publicação de uma biografia de autoria de Isabel Nery assinalou a data também.

O DN republica hoje alguns textos de um suplemento de 20 páginas dedicado à poeta por ocasião dos cinco anos sobre a morte, a 2 de julho de 2004, quando se silenciava a voz da poesia que marcou a literatura portuguesa ao longo de seis décadas, que incluía depoimentos de alguns dos filhos, do ex-Presidente Mário Soares, de Vasco Graça Moura, Lídia Jorge, entre outros que privaram ou estudaram Sophia. Foram também reproduzidos alguns poemas inéditos nesse suplemento.




Sophia de Mello Breyner Andresen começou a publicar com um título simples, Poesia, para depois os elaborar numa forma ainda mais simples, como Dual, Coral, Geografia, ou mais intrincados como Dia do Mar, No Tempo Dividido, Cristo Cigano, por exemplo. No primeiro nome dado ao livro ainda não tinha a ajuda do marido, Francisco Sousa Tavares, e nos últimos também não, porque as suas vidas se separaram, mas aqueles que ficaram entre o princípio e o fim foram fruto dessa união de fúrias e de paixão que eram as duas partes do casal, como conta a filha Sofia.

Há muito de Sophia nos seus livros e essa situação autobiografa-a o suficiente, como se depreende das primeiras falas de O Bojador em que Sophia escreve sobre o infante D. Henrique a ver o mar no promontório de Sagres:

Criança - Mas não se vê nada. É só mar.

Mulher - Ele vê melhor do que nós.

Criança - Ah? Eu pensava que ele não via. No outro dia encontrei-o no caminho e disse: "Bom dia, meu Senhor." Mas ele não me viu.

Mulher - Ele vê bem o que está longe.

Sophia era assim, a ver o mar, ou outros, o país, a história, as mudanças e os ânimos... Um pouco como as pessoas devem ser, e alguns depoimentos dos que se seguem clarificam que para lá da poeta havia uma mulher que se solidarizava com as dores dos outros enquanto escrevia a nossa poesia.

A relação com o marido segundo Sofia Sousa Tavares

São cinco os filhos de Sophia: Maria, Isabel, Miguel, Sofia e Xavier. À exceção de Maria, professora e poeta, nenhum dos outros lhe sucedeu na poesia. Miguel é escritor e, tal como a mãe, já escreveu alguns livros para jovens. Xavier pinta e Isabel e Sofia têm outras atividades profissionais. Da filha Sofia, Sophia dizia que tinha muito jeito para escrever cartas. Isabel é dada a causas, vive no Porto, mas esteve muitos anos em missões em Angola e em Moçambique.

O mar sempre presente na poesia da mãe ficou ligado à filha que herdou o seu nome, Sofia. Tal como Sophia se apercebia desse mar pela janela, Sofia vivia-o em corpo inteiro na sua infância ao lado da mãe e dos passeios de barco pelas grutas da Ponta da Piedade, em Lagos, ficavam-lhe as impressões de criança que depois veria transformadas pela poeta em poemas nos seus livros. São vários e espalhados pelas obras os momentos de que Sofia se aperceberia desses passeios de verão: "Eram coisas muito vividas connosco todos os dias, os passeios de barco com ela, esse lado da vida que nos deu. As viagens às grutas e o que escrevia a seguir, como é o caso do poema sobre a Gruta do Leão. Muitos anos mais tarde, foi a vez de os meus filhos irem às grutas e de lerem algumas coisas dela sobre isso." Sofia tem várias memórias desse tempo: "Aquele texto da praia da Dona Ana para Lagos, O Caminho da Manhã, que eu me lembro de fazer quando íamos a pé até à praça."




Sofia chama-se assim porque o pai quis. A primeira filha ficou com o nome da avó, Maria, a Isabel, porque a mãe queria muito que assim fosse e juntou-lhe o Sofia porque o pai receava não ter mais filhas, mas, quando nasceu a última filha, aí ficou só Sofia: "Esta é mesmo só Sofia, disse o meu pai. Era assim, pelo menos, que eles contavam a história."

Histórias de família há muitas e a filha não se esqueceu delas. Como não ignora a responsabilidade de ser filha de Sophia, apesar de comentar imediatamente que não foi a que herdou o jeito para escrever, nem da mãe nem do pai: "O meu pai escrevia bem. Aliás, a mãe dizia que ele escrevia maravilhosamente bem." Essa é a outra parte do casal que não esquece, a de ser filha de Francisco Sousa Tavares e, quando se refere que o seu pai fica um pouco eclipsado face ao fulgor de Sophia, esclarece: "Não, eu não penso isso. O meu pai queria que a minha mãe sobressaísse mais do que ele e era extremamente generoso com ela. Lembro-me de ele me dizer muitas vezes: "A sua mãe é um grande poeta, um grande escritor." Passava-nos muito essa mensagem, mesmo que tivesse havido momentos difíceis para ele por ser casado com ela, embora a minha mãe tivesse uma profunda admiração pelo marido. Profunda! Uma paixão... Eu só a vejo casada com ele." Sophia e Francisco separam-se tardiamente, aos 60 anos, e Sofia não tem dúvidas em afirmar que foi um choque: "Acho que o meu pai fez muita falta na família. Ser filho deles tinha momentos difíceis e outros fascinantes porque eram duas pessoas que, quando discutíamos assuntos da política, cultura, literatura, e de tudo, davam-nos uma aprendizagem permanente. E, quando o meu pai saiu de casa, apercebi-me de que havia um lado que se perdia. Tive essa nítida sensação."

Pergunta-se-lhe o que sentiu a mãe? Dá um exemplo: "No primeiro livro que publicou a seguir ao meu pai sair de casa, ela não conseguia dar-lhe um título. E um dia disse-me: 'Falta-me o pai, porque eu punha sempre os títulos que ele me sugeria.' Achei muita graça a isto."

Quanto ao reconhecimento da mãe como poeta, Sofia acha que acontece praticamente desde o início. Já o do seu pai é mais problemático: "Ele gerava muita polémica porque falava com o coração nas mãos, dizia o que pensava. Adorava política, mas acho que não era um político, era um homem para fazer aquilo que fez muito bem, ser diretor de um jornal e escrever o que pensava. Tanto no PS como depois nos grupos reformadores dentro do PSD, penso que não o apreciavam como merecia. Não lhe perdoavam o ele dizer as coisas."

Um mundo próprio segundo Frederico Lourenço

O mar era primordial para Sophia, o do litoral português, das praias do norte ao Algarve, o de qualquer parte do mundo mas em muito o do Mediterrâneo, onde se encontra com a Grécia e a cultura grega clássica. Num seu trabalho O Nu na Antiguidade Clássica (1975), a poeta diz: "Quando na praia apanhamos uma concha aquilo que tão profundamente nos toca é isto: a forma que temos na mão é uma forma que não podia ser de outra maneira. É como se na concha estivesse escrito o pensamento do universo." E nesta ordem do mundo coloca o corpo humano que serve de leitura ao artista grego, explicando que "falar do nu na arte grega é sempre falar da relação do homem com o divino". A força da cultura helénica marca Sophia como o fez com o mundo e, por isso, diz-nos: "A Grécia é um país envolvido e penetrado pelo mar."



Escritor e tradutor de alguns dos maiores clássicos gregos, Frederico Lourenço compreende-a melhor do que ninguém neste âmbito da sua dimensão pessoal e considera que já no primeiro livro da escritora, publicado em 1944, se pressente o que mais tarde virá a ser essa realidade a que a autora chamou "Grécia": "É antes de mais a vivência de um ideal que chega à imaginação de Sophia filtrado por outros autores. Temos a questão da dicotomia de Nietzsche entre Apolo e Dioniso. Temos a projeção na Grécia Antiga de um estado de graça, inclusive ao nível político, o que era importante quando em Portugal se vivia uma ditadura. Sophia vê nos gregos os defensores da justiça e não é por acaso que, no poema 'Catarina Eufémia', recorre à personagem de Antígona para simbolizar Catarina. Se as projeções de Sophia correspondem ou não ao que foi de facto a realidade grega, não é importante."

O próprio Frederico Lourenço garante que cada vez que volta à Grécia vive-a tanto por intermédio dos poemas de Sophia como por intermédio de tudo o que estudou como helenista. E volta a Sophia: "Ela encontrou uma verdade, a que chamou 'Grécia', que é para mim um dos mais importantes contributos para a cultura europeia no século XX. Tenho pena de que a obra de Sophia seja pouco conhecida no estrangeiro. E tenho pena de que ela seja daqueles autores que resistem à tradução, pois respiram quase a cem por cento na própria língua portuguesa. Cada vez que releio a obra poética de Sophia acho que ninguém devolveu à nossa língua tanta beleza na simplicidade." Numa apreciação final revela a sua opinião sobre a coragem com que a poeta seguiu o seu caminho na poesia. Diz que é "espantosa" essa coragem e que foi "sempre absolutamente fiel a si própria, sem nunca se deixar seduzir pelo que de mais hermético, futurista ou experimental outros estavam a fazer. Conseguiu construir nos anos 1960 e 1970 uma obra poética sem nunca usar a palavra 'menstruação', por exemplo. Acho isso fulgurantemente genial".

O pouco esforço de Eduardo Gageiro para captar Sophia

A poeta não era muito dada a deixar-se fotografar, mas Eduardo Gageiro conseguiu fazê-lo numa sessão que não esquece e que aceitou recordar. Tudo começou por causa de uma fotografia dessa sessão em que surgem uns carrinhos de brincar do filho Miguel, que ficaram esquecidos no parapeito da janela, e foram registados pela câmara. Sabe-se que a poetisa não gostava de posar e que, apesar de ter muitas fotografias suas, foram poucas as vezes em que se disponibilizou para ser captada pelas máquinas em sessões marcadas para o efeito, mas com Gageiro as coisas passaram-se de um modo um pouco diferente. Explica, de antemão, que só foi possível obter essas horas devido à sua relação com a família, que já vinha sendo cimentada por outros trabalhos anteriores, como foi o caso de uma série de fotografias para o Século Ilustrado nos anos 60: "As coisas correram otimamente e o relacionamento manteve-se daí em diante."




Quando precisava da colaboração de Sophia, diz, "ela estava sempre recetiva, e a amizade continuou com idas à residência da família durante muitos anos seguidos". O fotógrafo revela: "Ela confiava em mim e, apesar de não ser da família, acho que lidavam comigo quase como se fosse. Tratavam-me muito bem e esse relacionamento de confiança fundamental facilitou o trabalho." O fotógrafo não teve dificuldade em captar-lhe o estado de espírito. E explica: "Para fazer uma boa fotografia é preciso haver sempre uma grande empatia entre o fotógrafo e o fotografado. E acho que essa empatia existia a 100%, e, como Sophia era uma senhora de uma beleza fantástica e cordial, não era preciso forçar nada. Era a sua maneira de se sentar, as mãos, o modo de pegar no cigarro, numa chávena de chá. Aquilo era fantástico! E era muito natural!"

A amizade extrapolítica com Mário Soares

Quando se questionou Mário Soares sobre os contornos de alguma ligação política com Sophia de Mello Breyner Andresen, nem houve tempo de terminar a pergunta, porque respondeu imediatamente: "A Sophia toda a vida esteve comigo!" E continuou: "Eu fui amigo da Sophia de Mello Breyner e do marido desde os anos 60, quando começaram a aparecer nas listas dos católicos chamados progressistas, e também na Sociedade Portuguesa de Escritores, e relacionei-me com o casal porque convidavam-me muitas vezes para ir jantar lá a casa e almoçavam frequentemente na minha casa. Criámos uma amizade fraterna muito antes do 25 de Abril de 1974. Depois, sucederam-me várias coisas, fui parar a São Tomé, onde estive quase um ano, e eles foram-me lá ver e a nossa amizade foi permanente, mesmo quando fui para o exílio visitaram-me em França."




Quanto à poesia de Sophia, o ex-Presidente da República confessou que sempre a leu, enquanto a mulher, Maria Barroso, era encantada pela obra: "Lembro-me de falar com o Jaime Cortesão, que tinha por ela uma admiração ilimitada. E toda a gente tinha, porque não era só uma grande poetisa, era também uma mulher de grande cultura e de grande inteligência, com um perfil moral a toda a prova, com uma dignidade e uma retidão moral, para dizer a expressão exata, extraordinárias."

E revelou: "A certa altura, no entanto, telefonou-me à noite e disse-me: 'Ó Mário, não estou a gostar muito da política! Você desculpe, mas eu vou-lhe causar uma grande tristeza.' 'Então, o que é?' 'Eu quero sair do partido.' 'Ó Sophia, não me causa tristeza nenhuma, eu acho bem que você saia e compreendo perfeitamente! Sai quando quiser, já lá esteve muito tempo, não se preocupe!' E assim foi, saiu do Partido Socialista mas a amizade continuou."

Programa do Centenário de Sophia

Lisboa: Concerto Comemorativo no Teatro Nacional de São Carlos, hoje, pelas 20.00.

Bibliotecas de Lisboa celebram Sophia.

GrândolaGrândola celebra Sophia

Hoje no Cineteatro Grandolense.

Macau: Colóquio na Universidade de São José sobre a obra de Sophia, a poesia, questões de tradução e a literatura na sala de aula. Hoje e amanhã. 

Lisboa, dia 12

Inauguração da exposição Lugares de Sophia, em Lisboa.

Fotografia de António Jorge Silva, Duarte Belo e Pedro Tropa.

No Quartel do Carmo, pelas 18.00.

Porto, dia 16

Ciclo de Conferências no Porto "Sophia e as Artes".

Na Fundação de Serralves e na Biblioteca Municipal Almeida Garrett.

Início no dia 16, seguindo-se os dias 23 e 30 de novembro, e a 7 e 14 de dezembro.

Pelas 17.30.


por João Céu e Silva in Diário de Notícias | 6 de novembro de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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