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Goa. Os desafios da conservação de pintura indo-portuguesa

O trabalho de conservação e restauro desenvolvido no Convento de Santa Mónica é um reflexo de uma cooperação de sucesso entre Goa e Portugal.

Miguel Mateus durante o processo de remoção de vernizes antigos no Convento de Santa Mónica em 2011. © David Teves Reis, cortesia MoCA

 

Para a atribuição do epíteto de Roma do Oriente à Velha Cidade de Goa contribuiu a produção artística realizada durante os séculos XVI e XVII, pela mão de artistas que circulavam na antiga Índia portuguesa ou que aí se encontravam estabelecidos.

Atualmente, devido ao seu estado de conservação geral e na ausência, de uma forma geral, de documentação essencial organizada (como, por exemplo, a sistematização de um inventário de bens), muito deste património móvel, nomeadamente as pinturas de cavalete, corre o risco de dissociação, perdendo interpretação e contexto. Reverter esta tendência requer no presente uma cooperação sistemática entre Goa e Portugal, mais especificamente na partilha de conhecimento entre profissionais com experiência em pintura indo-portuguesa, com vista a desenvolver ferramentas de interpretação, bem como metodologias adequadas para a sua conservação.

A grande maioria das pinturas religiosas desse período representam, na sua versão original, uma harmonia idiossincrática de cenas católicas, com uma subtil inclusão de tradições iconográficas e estilísticas da arte hindu, budista, jainista e islâmica. As engenhosas soluções adotadas pelos artistas locais em matéria de materiais, construção e técnicas decorativas também são facilmente percetíveis.


Na Igreja da Cruz dos Milagres, a equipa deparou-se com uma grande pintura sobre madeira coberta por camadas de sujidade, vernizes antigos e, aparentemente, sem outros danos de maior.© David Teves Reis, cortesia MOCA


Infelizmente, muitas características destas pinturas de Goa encontram-se presentemente ignoradas sob camadas de repintes ou vernizes que, com a sua oxidação, tornam a superfície amarelada e opaca. Estes revestimentos eram aplicados regularmente para reparar danos causados por séculos de exposição destas obras a ambientes não controlados, num clima tropical de monção caracterizado por flutuações elevadas de humidade relativa e propício à atividade danosa de microrganismos e insetos xilófagos. As consequências para os materiais de suporte como madeira ou tela revelaram-se igualmente devastadoras para as frágeis camadas de preparação e de policromia.

Numa fase inicial (séculos XVI e XVII), as pinturas danificadas seriam repintadas por artistas afirmados, imbuída a sua intervenção, apesar da qualidade pictórica, de um conceito de restauro muito diferente do atual. Progressivamente, a circulação cosmopolita e privilegiada de artistas e materiais entre Goa e a Europa chegou ao fim, tal como a Velha Cidade, refletindo-se numa reduzida qualidade das intervenções posteriores. As obras vão sendo armazenadas ou expostas sem as condições apropriadas e são, em grande parte, tratadas com metodologias, técnicas e materiais desadequados num esforço para estabilizar ou dissimular os diferentes danos. Ao perderem gradualmente os seus valores primitivos, a capacidade de apreciação e interpretação destas obras foi prejudicada.

Em 2011, teve lugar uma cooperação bem-sucedida entre Goa e Portugal para a conservação e restauro do património integrado da Igreja do Convento de Santa Mónica em Velha Goa, hoje parte do circuito expositivo do MoCA - Museum of Christian Art. Este museu, apoiado financeiramente pelo Directorate of Archives and Archeology (Diretoria de Arquivos e Arqueologia) do governo de Goa, formou uma equipa internacional liderada pelo conservador-restaurador Miguel Mateus (Lisboa, 1957-2015). Colaborando com o colega José Artur Pestana (ambos formados no antigo Instituto José de Figueiredo nas especialidades de escultura em madeira policromada e pintura mural, respetivamente) e com a equipa da histórica empresa local de conservação e restauro Bico, Contracting and Trading, foi formada uma equipa transnacional com vasta experiência na conservação de património indo-português, tendo a mesma sido anteriormente responsável pelas intervenções na Capela de Nossa Senhora do Monte, em Velha Goa (2002-2003), e na Capela de Nossa Senhora da Esperança da ilha de Vypeen, em Cochim (2005), ambas com o apoio financeiro da Fundação Oriente.


Pintura As Exequias da VIrgem Maria pendurada a parede da Igreja da Cruz dos Milagres,
2019 © David Teves Reis, cortesia MOCA

 

Na Igreja da Cruz dos Milagres, no Convento de Santa Mónica, a equipa deparou-se com uma grande pintura sobre madeira coberta por camadas de sujidade, vernizes antigos e, aparentemente, sem outros danos de maior relevância no suporte e nas camadas superficiais. A metodologia implementada ilustra claramente o processo científico que envolve o desafio de levar a cabo uma intervenção de conservação e restauro de pintura indo-portuguesa.

A equipa iniciou o tratamento pela fixação das camadas pictóricas em destacamento, bem como pelas operações de estabilização do suporte em madeira deste painel. Em seguida, concentraram-se na remoção de vernizes antigos seguindo protocolos de limpeza desenvolvidos e testados cientificamente para a conservação e restauro, exigindo conhecimentos de química orgânica para serem aplicados, seguindo critérios operativos particulares para a remoção faseada de determinados materiais estranhos e de modo a não danificar os materiais adjacentes.

À medida que a intervenção progredia, foram realizando vários testes de solubilidade antes de decidir acerca da mistura de solventes e técnica de limpeza adequada, o que permitiu um método seguro e controlado na remoção das antigas camadas de verniz que deturpavam as cores originais. Estas camadas envelhecidas foram delicadamente e pacientemente removidas, documentando-se fotograficamente todas as etapas do processo, cientes da frágil superfície da camada pictórica que iriam revelar, com elementos decorativos em folha de ouro e velaturas delicadas.

Depois de restabelecida a integridade material da pintura, foi possível apreciar novamente a sua composição. O Miguel contactou com o historiador de arte Vítor Serrão, que em pesquisa coetânea descobriu importante documentação sobre a produção artística no Convento de Santa Mónica (notícia publicada no DN de 24 de março de 2009 - "Vítor Serrão defende património artístico português em Goa"), e juntos conseguiram dados importantes para a interpretação desta pintura, nomeadamente a identificação dos dois temas representados - as Exéquias da Virgem Maria pelos Apóstolos e a Assunção junto de Jesus Cristo. Esta curiosa composição terá sido adaptada pelo pintor local Aleixo Godinho (que obrava naquela altura no Convento das Mónicas) e inspirada em gravuras do flamengo Hieronimus Wierix (1593), provando que a produção artística goesa no início do século XVII estava perfeitamente atualizada (sobre o assunto vide o artigo de Vítor Serrão e Miguel Mateus publicado na revista ARTIS, n.º 01/2013, pp. 52-59).

O passo seguinte para o restauro desta pintura exigia um exame mais aprofundado dos repintes detetados sobre as vestes das figuras e sobre o fundo escuro, suspeitando-se serem mais delicados e com gradações de cores. A equipa necessitava de ter a certeza da extensão destes repintes e do estado de conservação das camadas primitivas antes de prosseguir com a remoção irreversível destas intervenções posteriores. Como as técnicas científicas modernas de análise para estudo de obras de arte (como a refletografia de infravermelho e a radiografia) não estavam disponíveis em Goa, foi decidido manter a pintura na condição em que se encontrava, uma vez que a conservação geral das camadas superficiais era satisfatória e a interpretação do objeto tinha sido alcançada. Assim, evitaram-se os riscos de um procedimento irreversível até que ocorressem oportunidades futuras para uma decisão mais fundamentada.

No caso deste painel, os vernizes escurecidos escondiam camadas pictóricas bem preservadas mas, noutras pinturas em Goa, poder-se-ão encontrar repintes muito espessos ou grandes áreas já sem a pintura original. É preciso avaliar, previamente a qualquer operação de restauro, as questões éticas e técnicas, especialmente em procedimentos como a limpeza e reintegração cromática. Os procedimentos de restauro são complexos e exigem que o conservador-restaurador crie pontes de ligação com diferentes campos de especialidade no sentido de poder propor uma metodologia de intervenção bem fundamentada, a fim de obter resultados que assegurem a interpretação, a autenticidade, a integridade histórica e material do objeto.

Atualmente, as intervenções em Goa executadas por conservadores-restauradores qualificados, seguindo os padrões internacionais para a prática da conservação e restauro, dependem sobretudo de situações como outsourcing, bolsas de estudo, programas de formação ou destacamentos temporários de quadros técnicos, fundamentalmente devido à falta de equipas permanentes e qualificadas nas instituições zeladoras deste património, sobretudo a diocese, paróquias e instituições religiosas. Será necessário estabelecer e aplicar uma abordagem mais holística para a preservação do património cultural e gerir outras questões urgentes, como o desenvolvimento de planos de gestão de riscos, inventários, conservação preventiva e curativa. Somente com equipas locais qualificadas se conseguirá levar a cabo um trabalho sistemático definido por prioridades de intervenção.

O legado do Miguel Mateus para a conservação do património indo-português permanece nos trabalhos desenvolvidos pela sua equipa e nos projetos em curso de todos aqueles que com ele estiveram envolvidos nessa busca pela interpretação e conservação do património pictórico de Goa. O trabalho de conservação e restauro desenvolvido em Santa Mónica, onde este painel pode novamente ser apreciado, é um reflexo de uma cooperação de sucesso.


 

Este artigo foi originalmente publicado em versão inglesa no jornal diário Herald, Goa, na edição de 19/07/2020.

Os autores agradecem ao arquiteto Fernando Velho pela iniciativa em desafiar investigadores do património indo-português a escrever para os leitores em Goa (e igualmente, com esta publicação, para os leitores em Portugal), e pelo incansável apoio, em conjunto com o arquiteto Lester Silveira (ambos do grupo Goa Collective), no debate das questões patrimoniais e edição do texto em inglês.

Teresa Teves Reis e David Teves Reis são conservadores-restauradores de pintura de cavalete e escultura policromada. O primeiro contacto com a realidade do património católico em Goa teve lugar durante o seu estágio curricular no MoCA - Museum of Christian Art (2005). Têm vindo a colaborar em vários projetos para o estudo e a conservação do património em Goa.


por Teresa Teves Reis e David Teves Reis, in Diário de Notícias | 9 de agosto de 2020 
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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