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O retábulo imaginado por Almada Negreiros chega finalmente ao Mosteiro da Batalha

Almada Negreiros acreditava e defendia que os icónicos Painéis de São Vicente eram destinados à parede norte da capela do fundador, no Mosteiro da Batalha. Usou a geometria para o provar, e é toda essa investigação (além de um conjunto de 15 painéis) que está em exposição, comissariada por Simão Palmeirim.

A exposição 'Almada Negreiros e o Mosteiro da Batalha: Quinze Pinturas Primitivas Num Retábulo Imaginado' estará disponível ao público durante um ano. [Foto © Nuno Brites/Global Imagens]

 

"Aí vai o D. João I!", exclama Simão Palmeirim, comissário da exposição Almada Negreiros e o Mosteiro da Batalha: Quinze Pinturas Primitivas Num Retábulo Imaginado, que a partir deste domingo, 20 de dezembro (e durante um ano), vai estar aberta ao público. Ajuda a subir o painel com uma satisfação incontida, porque está quase tudo no seu lugar, no lugar que o artista imaginou. E o que ele andou para aqui chegar. Almada passou a vida inteira a tentar fazer vingar a sua tese sobre os icónicos Painéis de São Vicente, nunca reconhecida em termos históricos. Usou toda a sua criatividade para o fazer, todo o conhecimento em geometria descritiva, fez desenhos, investigação, e morreu sem ver o que o DN hoje lhe mostra, e que a partir de amanhã será real: o retábulo, tal como ele o imaginou, na Capela do Fundador.

Desde 2013 que ele e Pedro Freitas, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (da área da Matemática), têm trabalhado a geometria da obra plástica de Almada Negreiros. Ambos sabiam que este tema "apaixonou Almada durante muitos anos, mas dada a complexidade das propostas dele, em termos de geometria e de contextualização geral do tema, ainda não tinha sido possível qualquer publicação relevante a esse nível", conta ao DN, ele que é doutorado em Ciências da Arte pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, mediador cultural para a Fundação Calouste Gulbenkian, e que durante um ano é o comissário desta inédita exposição.

"Sobre este tema não havia mais nada publicado desde 1960, quando o próprio Almada explicou no DN, em entrevista a António Valdemar, a sua ideia." Foram várias a entrevistas feitas ao artista pelo jornalista e investigador, que aos 83 anos continua a contribuir para clarificar o que dizia e pensava Almada, a este respeito. O tema, porém, continuaria a ser controverso. Simão Palmeirim tem-se dedicado a compreender a evolução dos estudos de Almada Negreiros ao longo das décadas em que se debruçou sobre o tema e "tornar mais claro esse percurso".

Uma exposição pensada desde 2018

O encontro feliz que permitiu desenhar o que agora vai ser exposto aconteceu em 2018, quando o diretor do Mosteiro da Batalha, Joaquim Ruivo, convidou Simão para uma palestra a propósito da vida e obra do modernista Almada, artista plástico, poeta, ensaísta, romancista e dramaturgo. Já anos antes, o curador percorrera o monumento ao lado das netas do artista (ambas também arquitetas) Catarina e Rita, fiéis depositárias da memória e do espólio do avô. Falaram dessa possibilidade, de materializar ali, na Capela do Fundador, a teoria.

À medida que os anos passavam, Simão Palmeirim e Pedro Freitas iam consolidando a investigação. Entretanto, já havia "uma série de documentos inéditos, maquetas e desenhos de artista que valia a pena mostrar e explicar. Pensou-se então numa exposição em que, para lá do retábulo imaginado pelo Almada, fosse possível mostrar todo o contexto que o levou a isso: muitas anotações (não todas, porque são centenas), muitas maquetas tridimensionais, e que serão expostas e contextualizadas pela primeira vez".

O que acontece neste dezembro é "o concretizar de uma ideia do Almada pela primeira vez; o celebrar uma investigação em arte e geometria que levou décadas, sobre pintura primitiva portuguesa, com resultados plásticos absolutamente maravilhosos", acredita Simão Palmeirim.

A reconstituição (em si) foi feita através de um conjunto de parcerias consolidadas por Joaquim Ruivo. "A instalação do retábulo é mais uma celebração do investimento e da criatividade do Almada do que outra coisa. Mas mostrar os seus trabalhos preparatórios também é muito interessante", acrescenta o comissário da exposição.

Em causa estão os célebres painéis, pinturas que estão no Museu Nacional de Arte Antiga (todas elas visitáveis) atribuídas na sua maioria a Nuno Gonçalves ou à sua oficina. Estão expostos desde 1910. Em 1926, Almada Negreiros e o historiador José de Bragança redistribuíram os icónicos Painéis de São Vicente - que estavam apresentados como dois trípticos - dispondo-os num políptrico, já na perspetiva do estudo de geometria. Simão sublinha que "isso foi o grande motor e incentivo do Almada para perceber que a geometria podia dar incentivos para a compreensão da obra de arte". A partir daí vai procurando mais ferramentas e agregando mais obras de arte.

A importância da luz

Em 1950, José de Almada Negreiros publica a Chave Diz, o livro onde explica que "faltam duas tábuas e meia no todo da obra de Nuno Gonçalves - o pintor português que pintou o altar de São Vicente na Sé de Lisboa". Nessa edição de autor, "ele apresenta um retábulo preliminar, muito mais simples do que este que agora reconstituímos, com dez pinturas. E nos anos de 1950 dedica-se exaustivamente a essa investigação, e esse retábulo vai-se metamorfoseando ao mesmo tempo que adquire características mais específicas e mais detalhadas, culminando num conjunto de 15 pinturas".

No final dessa década de 50, Almada vai ao Mosteiro da Batalha acompanhado do escultor Leopoldo de Almeida e do arquiteto José Cortez. "Ao entrar na Capela do Fundador e vendo aquela parede, Almada percebe que é ali. Tem de ser ali. Começa a repensar a estrutura retabular que tinha montado em função daquela parede específica da Capela do Fundador." À medida que prossegue a investigação, percebe que a luz representada na maior parte das pinturas vem da esquerda. E que é a mesma luz que incide sobre os painéis. "Porque ele continua sempre a procurar coisas que justifiquem a sua ideia", sublinha Palmeirim.

Em 1962, Almada encontra na sua biblioteca pessoal um livro que contém uma representação de D. Filipa de Lencastre - que está sepultada precisamente na Capela do Fundador. E é então que associa este "dado novo" a uma pintura do Museu Nacional de Arte Antiga, representando D. João I, e juntas as peças: "Se há uma pintura de D. João, uma árvore genealógica de D. Filipa, estes dois seriam afinal pinturas. É aí que inclui ambos no retábulo como duas pinturas que agora vamos apresentar pela primeira vez." Uma delas já está na parede, outra sobe agora. Luís Seiça, o mais antigo funcionário do Mosteiro, segura-a com cuidado e humor. "Este foi o meu primeiro patrão." Simão Palmeirim e Pedro Freitas pegaram nos desenhos, ampliaram à escala, e estão agora colocados nas paredes da Capela do Fundador, visitáveis a partir deste domingo.

Encontro predestinado na Gulbenkian

Simão Palmeirim interage pela primeira vez com a obra de Almada Negreiros em criança. A mãe, bailarina na Gulbenkian, levava-o consigo muitas vezes. "E eu passava horas a fio no átrio da Fundação, onde existe aquela obra extraordinária que é o painel Começar, de 1968, inciso em pedra. E eu adorava tirar o pó daquelas linhas, enquanto esperava pela minha mãe", recorda. Além disso, o pai era alfarrabista, e em casa havia muita obra do Almada.

Mas Simão reconhece que nunca ligou muito a esses livros. Até que fez o doutoramento - dedicado à pintura do século XV e XVI, mais especificamente à composição visual, ferramentas geométricas que esses autores tinham ou não. E foi aí que se cruzou com o trabalho de Almada Negreiros, precisamente a propósito dos Painéis de São Vicente. "Por coincidência, conheci na altura as netas do Almada, que estavam pela primeira vez a abrir o espólio do seu avô a uma investigação da FCFH - que desde o início da década mantém o projeto modernismo.pt, um arquivo digital de trabalhos da geração de Orpheu. Simão passou a colaborar com o projeto, inventariando, catalogando e estudando as obras de Almada.

Foi assim, nesses caminhos cruzados, que conheceu Pedro Freitas. Aliando o conhecimento da pintura e ciências da arte com o de um matemático, fizeram estudos cada vez mais detalhados. Um dos mais interessantes foi concretizado há pouco tempo, com uma desconstrução completa do painel Começar. "Todas aquelas linhas já estão estudadas e justificadas por nós, inclusivamente com animações e todas as referências históricas e estéticas que o Almada usa". Um trabalho que envolve muitos investigadores, muita gente e muito tempo. "Mas para uma obra como a do Almada, que é tão complexa e intrincada e se devolveu ao longo de tantas décadas, era um bocado inevitável."

Ato de coragem do diretor do Mosteiro

Na conversa com o DN, entre os andaimes que permitem colocar cada peça no seu lugar, Simão Palmeirim sublinha "o ato de coragem do diretor do Mosteiro da Batalha, com todos os constrangimentos decorrentes da pandemia", até orçamentais. Mas Joaquim Ruivo resistiu ao caminho mais fácil, que seria adiar a exposição. É certo que houve alterações ao programa: não há inauguração oficial nem encontros e colóquios que estavam previstos.

"Sabia que a proposta destes investigadores dava garantia de um trabalho excecional, que nos permite conhecer em maior profundidade o pensamento e a obra do Almada Negreiros. Isso foi visível desde o início", sustenta o diretor do Mosteiro. Sabia (claro) dessa ligação do artista com o monumento da Batalha, "não só através de fotografias, aqui, com o Leopoldo de Almeida, mas também porque conhecíamos a sua tese, que é mais uma nessa demanda do Santo Graal da pintura portuguesa - que são os Painéis de São Vicente. Mas ter inéditos do Almada, conhecer de perto essa obsessão, só foi possível através do Simão e do Pedro", conclui.

Para um diretor de um monumento como o Mosteiro da Batalha (uma obra-prima do gótico), "é algo extraordinário. Porque nós temos obrigação de acolher o contemporâneo e o moderno nos nossos monumentos. Para mim, é das coisas que têm sido mais gratas", confessa Joaquim Ruivo, que dirige o Mosteiro da Batalha há oito anos. Chega ao fim de 2020 com a mesma sensação que atravessa os restantes monumentos e agentes culturais do país: "Nós tínhamos um plano de atividades muito bem estruturado, com um excelente orçamento (cem mil euros para a gestão cultural), sabendo que estes monumentos têm uma dinâmica cultural muito forte e que também são serviços que atraem centenas de milhares de visitantes." Só que a pandemia trocou as voltas.

No ano passado, o Mosteiro registara 410 mil visitantes, e no ano anterior 500 mil. Eram esperados para 2020 cerca de 450 mil, maioritariamente espanhóis e italianos. A pandemia congelou o turismo e as visitas, levando apenas cerca de 50 mil entradas no monumento, das quais a esmagadora maioria aconteceu nos primeiros meses do ano, até ao início de março. "Havia aqui uma expectativa que foi cerceada, com poucas receitas e muito mais despesas." O plano de atividades ficou em suspenso, com raras exceções, como esta exposição. "Deste projeto não podia abdicar."

 


por Paula Sofia Luz, in Diário de Notícias | 18 de dezembro de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

 

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