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Gravações inéditas de Mário Viegas levadas para a guerra vão ser editadas

Registos feitos em 1969 para um médico de Vila Real levar consigo para a Guerra Colonial foram agora reveladas e ficarão disponíveis num audiolivro a publicar em maio.

DR


O médico Jorge Leite Ginja, que morreu no ano passado, deixou numa gaveta gravações feitas por Mário Viegas de dois excertos de teatro e 40 poemas, 29 dos quais inéditos, conta Hélia Viegas, irmã do ator e declamador português, que morreu há 25 anos.

“Não sabíamos de nada, só descobrimos quando [os familiares de Jorge Ginja] encontraram as fitas”, disse à Lusa Hélia Viegas, sem esconder o “espanto” e “encanto” por esta descoberta, “neste momento, quando faz 25 anos da morte” do seu irmão.

Os poetas mais representados nas gravações são Manuel Alegre, Alexandre O'Neill e Ary dos Santos, mas há também António Gedeão, Armindo Rodrigues, Bertolt Brecht, Guerra Junqueiro, Joaquim Namorado, José Gomes Ferreira, Pablo Neruda, Sebastião da Gama, e um “pequeno poema de Gastão Cruz para fechar a fita, que poderá ter sido dito de memória”, revelou a filha do médico, que encontrou as fitas magnéticas na gaveta do pai.

Há ainda gravações de dois excertos de peças de teatro de Górki e de Tchékhov, uma com cerca de dez minutos e outra com 13 minutos, indicou José Moças, diretor da editora discográfica Tradisom, que está a tratar da edição do audiolivro, com publicação prevista para maio.

Hélia Viegas recorda como tudo começou: Mário Viegas e Jorge Ginja conheceram-se em 1968 no Teatro Universitário do Porto (TUP) e ficaram amigos. “Em 1969, quando Jorge Ginja é chamado para Angola, como oficial médico, pede ao Mário Viegas para lhe gravar uns poemas, são quase duas horas de gravação.” Entretanto, “Mário Viegas regressou a Lisboa para se dedicar ao teatro, e nunca mais se lembrou disso”, afirmou Hélia Viegas, que acredita que o irmão, “na nuvem onde está, deve estar divertidíssimo e derretido com tudo isto”.

Jorge Ginja foi médico-cirurgião no Hospital de São Pedro e depois no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro e foi Delegado Regional da Cultura do Norte, vereador na Câmara Municipal e membro da Assembleia Municipal de Vila Real. Catarina Ginja, filha do médico, recorda que o pai “nunca foi radical, mas sempre foi muito interventivo, com sentido de Estado e políticas públicas”, o que contextualiza o meio intelectual e algo subversivo em que se movia na altura do Estado Novo, sendo amigo de casa de figuras como José Mário Branco e amante de poesia, nomeadamente de poetas proscritos pelo regime de Salazar, como Alexandre O'Neill.

“Há uma fita magnética, que foi gravada pelo meu pai na casa dele, na Rua de Serralves, no Porto, onde morava com os meus avós. Foi gravada ali, no ano de 1969. Mário Viegas esteve pouco tempo no Porto. É muito curioso, é um tempo curto, mas é muito intenso”, recorda. Mário Viegas, que era estudante de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, chegou ao Porto em outubro de 1968, e Jorge Ginja foi para a guerra em abril de 1969.

“É um tempo muito intenso, de poesia dita no TUP. Eles tinham montado uma espécie de palco ilegal. Havia o palco normal, aberto a toda a gente e que a [polícia política] PIDE tolerava, mas depois havia as coisas que eram ditas nos convívios mais reservados.” Quando Mário Viegas chegou ao TUP, com apenas 20 anos, Jorge Ginja, na altura com 28, já lá estava desde os tempos do encenador António Pedro, tendo dado continuidade, após a sua morte, ao “teatro interventivo” a que se dedicava.

Foi nesse contexto que Mário Viegas chegou ao Porto e encontrou aquele ambiente, contou Catarina Ginja, salientando que o pai participava na seleção de textos, de poesia e de peças de teatro, mas não era ator. “Mal termina o curso, é chamado para ir para a guerra. Ele está no teatro, a guerra interrompe toda a vida ativa que ele tinha e onde ele queria estar. Não pode levar os livros que são proibidos, censurados pela PIDE, e talvez esta tenha sido a melhor forma que ele encontrou de levar as coisas com ele.”

Jorge Ginja saiu, assim, “de um meio intelectualmente muito ativo, lia imenso”, e chegou a África, a uma “companhia de pessoas extremamente humildes”. A sua filha imagina, por isso, que a audição das gravações nunca tenha sido partilhada, até porque tentou encontrar testemunhos de pessoas que as pudessem ter ouvido com o pai, e não conseguiu. “Achamos sempre que o meu pai terá feito isso na sua intimidade, no seu quarto, mas ele levou o gravador para a guerra, levou isto tudo para a guerra.”

As gravações regressaram de Angola para o Porto, do Porto foram para Vila Real, e ali ficaram vários anos, esquecidas, recorda Catarina Ginja. “Nós todos sabíamos da fita, esteve aqui na gaveta anos, mas ele não nos deixava mexer muito nas coisas dele. Nem nós fazíamos a mais pequena ideia do que estava nas fitas.” Durante anos, Jorge Ginja desafiou o editor da Tradisom, José Moças, de quem era amigo desde os tempos em que fora chefiara a Delegação Regional da Cultura do Norte, a ouvir as gravações de Mário Viegas e a fazer com elas alguma coisa, mas o tempo foi passando e o médico morreu sem que nada fosse feito.

A família decidiu agora dar continuidade à vontade do pai. Havia muitas fitas guardadas, com muitas gravações, mas aquela de Mário Viegas nunca a tinham ouvido. “Fui buscar as fitas às gavetas, ouvi e fiquei impressionada. O meu irmão fez uma pesquisa muito cuidada do que é que já estava editado e do que não estava editado, e percebemos que há muito inéditos. Coisas que o Viegas dizia, e terá dito em público, mas que não estão gravadas”, conta Catarina Ginja.

Neste momento, está um livro em preparação, que tem um prefácio e um testemunho de Manuel Alegre, de quem Jorge Ginja “foi muito companheiro” nas lutas políticas dentro do PS, acrescentou a filha. De acordo com o diretor da Tradisom, a digitalização está feita e é praticamente garantido o apoio ao projeto pela Direção Regional da Cultura do Norte.

“Sabemos que, daquelas 42 peças que ele declama, 29 são completamente inéditas, ou seja, ele nunca mais voltou a lê-las, e isto tem uma importância fantástica, tendo em conta que ele era bastante jovem. Não sabemos, pode haver gravações anteriores, e em princípio há, mas, em termos de edição, essas serão as mais antigas até hoje publicadas. Estamos a trabalhar no livro e a acelerar o processo, a ver se sai em maio”, afirmou José Moças.

A livraria In-Libris, no Porto, está a colaborar na parte gráfica, e o programador cultural Isaque Ferreira está a fazer o trabalho de análise e ordenação da poesia. Segundo Catarina Ginja, os poemas gravados foram escolhidos pelo seu pai, a partir de livros da sua biblioteca pessoal, que incluía muitas primeiras edições. “Não que as procurasse, mas muito destes poemas eram da atualidade, na altura.”

“Ainda vamos fazer os acertos, porque aquilo foi feito de enfiada, [Mário Viegas] pegou nos poemas e gravou tudo de seguida, e não repete, que é uma coisa impressionante”, explicou José Moças. “O que mais me impressionou nisto tudo é que nós estamos a ouvir o Mário Viegas que nós sempre conhecemos, é exatamente o Mário Viegas como a gente o conhece até ao dia em que ele morreu, ou seja, a maneira de dizer as coisas já lá está, aos 20 anos. Fiquei arrepiado. As pessoas têm sempre alguma evolução, o homem já estava assim desde o início, aquilo já lá estava, que é uma coisa absolutamente genial, aliás corresponde perfeitamente ao que ele era, genial”.

O audiolivro reúne os poemas em texto e tem dois CD, um com a poesia e outro com o teatro, que totalizam perto de 90 minutos de gravação, explicou o diretor da Tradisom, adiantando estar a pensar fazer mais qualquer coisa, como ter códigos QR, que “dêem a perspetiva às pessoas do que aconteceu, a gravação na sua origem, pura e dura”, mas isso ainda está a ser estudado.

Nascido em Santarém, a 10 de novembro de 1948, António Mário Lopes Pereira Viegas viria a tornar-se ator, encenador e recitador português, sendo considerado um dos melhores atores da sua geração e um dos melhores declamadores de poesia. Deixou várias gravações áudio e participações em filmes, quer no cinema como na televisão. Satírico, irónico e humorista, Mário Viegas morreu no dia 1 de abril de 1996.


por Lusa in Público | 2 de abril de 2021
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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