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Mário Cesariny - Um homem aceso como um barco

Foi incómodo durante a ditadura, quer pela irreverência da sua obra pictórica e poética, quer pela audácia com que assumiu a homossexualidade. Mário Cesariny de Vasconcelos, um dos "pais" do Surrealismo português, nasceu há 100 anos.

© Eduardo Tomé / Arquivo DN
Alimentou em plena ditadura, que vigiava tanto os costumes como as opções políticas de cada um, uma lenda de provocador e libertino. Mas se cedermos à tentação de definir Mário Cesariny de Vasconcelos, cujo centenário de nascimento se comemora hoje, importa dizer que esse é apenas o lado mais histriónico da contínua subversão que foram a sua vida e obra, tanto a literária como a pictórica. Uma subversão feita de exigência estética, mas também existencial e linguística, como sugere um dos seus poemas mais conhecidos, You are welcome to Elsinore: "Há palavras acesas como barcos/ E há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição". Ou ainda: "Queria de ti um país de bondade e de bruma/Queria de ti o mar de uma rosa de espuma."

Mário foi o quarto filho (e único rapaz) de Viriato de Vasconcelos, natural de Tondela, e de sua mulher María de las Mercedes Cesariny (de ascendência paterna corsa e materna espanhola), nascida em Paris. O pai era ourives de profissão, com loja e oficina na rua da Palma, em plena baixa lisboeta, mas o rapaz veio ao mundo quando a família estava de férias de Verão, na então bucólica e distante Benfica, mais propriamente na Vila Edith, uma das muitas moradias solarengas que ainda existiam na zona na primeira metade do século XX. Não foi uma infância fácil, como o próprio tantas vezes recordou, já que do pai guardaria uma imagem de déspota doméstico.

Concluída a escola primária, Mário frequentou o Liceu Gil Vicente, mas esse mesmo pai, com o objetivo de dar continuidade ao negócio familiar, inscreveu-o no curso de Cinzelagem na Escola de Artes Decorativas António Arroio. O progenitor ainda não sabia, mas essa viria a ser uma opção providencial. Ali, Cesariny conheceria Artur do Cruzeiro Seixas e Fernando José Francisco, que, como ele, viriam a ser protagonistas do Surrealismo português.

Embora complete a formação em Cinzelagem, o jovem estudante está já decidido a não seguir os passos paternos. Não quer ser ourives, aspira a artes menos aplicadas. Inscreve-se num curso preparatório para a frequência do curso de Arquitectura na Escola de Belas-Artes de Lisboa. Pela mesma época, também estudou Música com o compositor Fernando Lopes Graça. Cesariny revelava um certo talento para o piano, mas o pai, duplamente furioso com o que considerava ser uma atitude diletante e com a desobediência aos seus próprios desígnios, proibiu-o de prosseguir tais estudos.

O final da adolescência de Mário Cesariny coincide com a Segunda Guerra Mundial e com a expectativa, pelo menos nos setores mais progressistas da sociedade, de que uma potencial vitória dos aliados trouxesse a Portugal o fim do salazarismo e a instauração de um regime democrático. Com os amigos, o jovem frequenta várias tertúlias nos cafés de Lisboa e descobre o Neo-realismo e depois o Surrealismo. Juntos fazem planos, mas não se limitam a esperar por melhor oportunidade. Em 1945, Cesariny tem 23 anos e apresenta a conferência "A Arte em Crise" para os operários da CUF, no Barreiro. Publica artigos no jornal A Tarde e nas revistas Seara Nova e Aqui e Além. No ano seguinte, escreve o poema Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos e faz uma colagem em torno da figura do General De Gaulle, herói da Resistência Francesa.

Em 1947, tem 24 anos e o seu trabalho é já suficientemente importante para que uma bolsa de estudo o leve a Paris, onde durante alguns meses frequenta a Académie de la Grande Chaumière. Ousado, visita André Breton (1896-1966), fundador do Dadaísmo e, mais tarde, do Surrealismo, e deixa-se "contaminar" pela criatividade exuberante destas correntes estéticas que, em Paris, tinham décadas, mas que Portugal ainda não conhecia.

De regresso a Lisboa, Cesariny estará no cerne da criação do Grupo Surrealista, tendo a seu lado figuras emergentes das Artes Plásticas e da Literatura como António Pedro, José Augusto França, Cândido Costa Pinto, Vespeira, João Moniz Pereira e Alexandre O"Neill. O grupo, que reunia na Pastelaria Mexicana, em Lisboa, surgia, assim, como forma de protesto libertário contra a estética propagandística do regime, mas também contra o conservadorismo formal do Neo-Realismo, em boa parte comprometido com os objetivos políticos do Partido Comunista. Mais tarde, desentendimentos dentro deste grupo levá-lo-iam a fundar o antigrupo (dissidente) Os Surrealistas, sendo seguido por António Maria Lisboa, Risques Pereira, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, Fernando José Francisco e Mário-Henrique Leiria (cujo centenário de nascimento também se assinala este ano).

Cesariny não pára: De uma intensidade rara entre nós, entrega-sede corpo e alma a uma experimentação contínua nas palavras, como nas telas. Pinta, faz colagens, desenvolve "soprografias" (obras criadas através do sopro de tinta sobre o suporte) e as "sismografias", produzidas durante as viagens de elétrico, autocarro ou comboio. Fazendo jus a uma tradição surrealista, dedica-se ainda ao cadavre exquis, técnica que consiste na produção de uma obra em cadeia criativa, realizada por 3 ou 4 artistas, em tempo real.

Na década de 1950, Cesariny dedica-se à pintura, mas também à poesia, que escreve nos cafés de Lisboa, de que se torna uma figura tutelar. Colabora na revista Pirâmide (1959-1960), editada por Luiz Pacheco, com quem mais tarde (nos anos 1970) se incompatibiliza por completo, mas também com as revistas Transformation (Inglaterra), Brumes Blondes (Holanda), Phases e La Crecele Noire (França), Arsenal: Surrealist Subversion (EUA), mas será a sua poesia que lhe valerá uma atenção crescente de crítica e leitores.

Em diálogo incessante com a obra de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Teixeira de Pascoaes, Cesariny nunca deixa de ser um cosmopolita, fascinado, por exemplo, pela obra do argentino Jorge Luis Borges. Como escreve Fernando J.B. Martinho em número da revista Relâmpago dedicado ao poeta, "Há, desde cedo, em Cesariny um cosmopolitismo que as viagens que realiza a partir dos anos 60, a Inglaterra, França, México, Estados Unidos, vão aprofundar. Esse espírito cosmopolita leva-o naturalmente a diversificar os seus interesses, as suas leituras."

Assim surgirão, por ordem cronológica, as obras Corpo Visível (1950); Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952); Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953); Manual de Prestidigitação (1956); Pena Capital (1957); Alguns Mitos Maiores e Alguns Mitos Menores Postos à Circulação pelo Autor (1958); Nobilíssima Visão (1959); Poesia 1944 - 1955; Planisfério e Outros Poemas, (1961) Um Auto para Jerusalém, (1964) Titânia e A Cidade Queimada, (1965); 19 Projectos de Prémio Aldonso Ortigão Seguidos de Poemas de Londres, (1971); As Mãos na Água a Cabeça no Mar (1972); Burlescas, Teóricas e Sentimentais (1972); Primavera Autónoma das Estradas (1980); Vieira da Silva, Arpad Szenes ou O Castelo Surrealista, (1984) O Virgem Negra (1989) Titânia (1994) ou A alma e o mundo (1997).

Ao longo de tão vasta obra, o seu tema preferido será o amor, expresso de uma forma mais carnal que bucólica, sobre o qual dirá: "É a única coisa que há para acreditar. O único contacto que temos com o sagrado. As igrejas apanharam o sagrado e fizeram dele uma coisa muito triste, quando não cruel. O amor é o que nos resta do sagrado." Dessa convicção íntima nascem alguns dos seus poemas mais belos, oníricos por vezes, como o já referido You are welcome to Elsinore ou Poema, em que se pode ler: "Em todas as ruas te encontro/ Em todas as ruas te perco/conheço tão bem o teu corpo/Sonhei tanto a tua figura/ que é de olhos fechados que eu ando/ a limitar a tua altura." Outros são claramente homoeróticos como este: "O público/o vinco das tuas calças/ está cheio de frio/e há quatro mil pessoas interessadas/nisso."

A assunção da homossexualidade já valera o exílio (no Brasil, onde morreu em 1959) a outro poeta, António Botto. Muito cedo, Cesariny começa a ser incomodado e a ser vigiado pela Polícia, por "suspeita de vagabundagem", obrigado a humilhantes apresentações e interrogatórios regulares. Como Helder Macedo (histórico titular da Cátedra Camões no King's college, de Londres), recordará anos mais tarde, na revista Relâmpago, em 1968, Cesariny foi viver para a capital britânica, durante alguns meses, acossado por tal realidade: "Tinha vindo recuperar de décadas de amargura. É hoje impensável como a sua sexualidade, aliás sempre discreta, levou a uma imagem de maldito, sempre mais imposta do que procurada. Ele era, isso sim, um grande senhor deserdado, um príncipe perdulário do seu reino." Esta perseguição policial só terminaria após o 25 de Abril.

A partir da década de 1980, a vasta obra poética de Cesariny será reeditada pelo editor Manuel Hermínio Monteiro, na Assírio & Alvim, e redescoberta por uma nova geração de leitores. Nos últimos anos da sua vida, viveu com a sua irmã mais velha, Henriette (falecida em 2004), num apartamento em Campolide, mas a importância da sua obra, bem como da sua figura, não estava esquecida. Em 2004, Miguel Gonçalves Mendes realizou o documentário Autografia, filme intenso onde Cesariny se expõe e revela. Em 2002 foi-lhe atribuído o grande Prémio EDP de Artes Plásticas e, em 2005, foi agraciado com Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Menos de dois anos após a sua morte, Rodrigo Leão e Gabriel Gomes musicariam poemas seus no disco Lisboa, com a participação do ator Rogério Samora como diseur.

Mário Cesariny morreu a 26 de novembro de 2006, em Lisboa. Ainda em vida doou o seu vasto espólio (mais de duas centenas de obras de arte, objetos de sua casa, arquivo e biblioteca pessoal, onde se encontram mais de quatro mil fotografias, cadernos, correspondência) à Fundação Cupertino de Miranda, que está a centralizar as comemorações do centenário. O programa abriu a 5 de agosto, com a inauguração da exposição "Mário Cesariny: Em todas as ruas te encontro", com curadoria de Marlene Oliveira, Perfecto Cuadrado e João Pinharanda. Na sede da Fundação, em Vila Nova de Famalicão, são apresentadas obras do principal núcleo artístico de Cesariny, presentes na coleção, bem como objetos que se encontravam nas paredes de sua casa, ou espalhados pelo seu quarto. Poderá ser visitada até setembro de 2024.

A sua poesia será, por sua vez, evocada no Carmina, evento que decorrerá entre 23 e 26 de novembro. Coordenado por Fernando Cabral Martins, contará com várias mesas redondas, com as temáticas Imagem, Arte, Poesia e Fernando Pessoa, tendo como convidados Rosa Maria Martelo, Perfecto Cuadrado, Ilda David, João Pinharanda, José Manuel dos Santos, Manuel Rosa, Pedro Dias, Mariana Pinto dos Santos, António Feijó e Richard Zenith, entre outros.

Do programa de comemorações, constarão ainda exposições no MAAT, em Lisboa, com obras não só de Cesariny, mas também de Vieira da Silva, Edouard Jaguer, André Breton, Cruzeiro Seixas, entre outros (a partir de outubro) e, já no próximo ano, haverá outras, no Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso, em Amarante, e no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra. Um programa vasto, mas não demasiado para quem foi tão múltiplo. Alguém que, de si mesmo, disse no poema Autografia: "Sou um homem, sou um poeta, uma máquina de passar vidro colorido."


por Maria João Martins in Diário de Notícias | 9 de agosto de 2023
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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