"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Publicações

Um livro sobre Faial e Pico que tem uma capitoa e até um padre anão

Com este "A Capitoa", o historiador João Paulo Oliveira e Costa faz uma nova incursão na ficção, oferecendo um fresco extraordinário das ilhas há cinco séculos, dando a conhecer uma sociedade que vive no meio do oceano, mas ligada aos mundos que os portugueses descobriram.

Viagem ao Faial e Pico do século XVI num romance que faz homenagem aos primeiros povoadores dos Açores

"Gosto deste oceano à minha frente", disse-me um dia João Paulo Oliveira e Costa, num almoço no Guincho, que resultou numa entrevista/perfil publicada no DN em que o apresentei "como um historiador tão reputado como prolífero, capaz de produzir teses, biografias e até romances", resumo que permanece perfeitamente atualizado. Sim, a tese de doutoramento do hoje professor catedrático na Nova foi sobre Portugal e o Japão, entre os seus trabalhos mais notáveis está uma biografia de D. Manuel I e acaba de publicar mais um romance histórico, com o título A Capitoa (Temas e Debates), que tem como ponto de partida D. Brites de Macedo, mulher de Jos Dutra, o flamengo que foi o primeiro capitão donatário das ilhas do Faial e do Pico.

Como o próprio autor esclarece no prólogo, pouco se sabe desta dama da Casa de Viseu, tirando que casou muito jovem, em 1468, e que assim a maior parte da sua vida foi passada nos Açores, 64 anos ao todo, durante os quais, fazendo parte dos primeiros povoadores, viu "o ermo tornar-se numa vila e as ilhas desertas em sociedades produtivas". D. Brites, bastante mais jovem do que o marido, enviuvou cedo, mas o casal teve vários filhos, entre eles um outro Jos Dutra, o segundo capitão do Faial e do Pico. Mulher e mãe de um capitão, o mais importante representante da Coroa nos primórdios do povoamento dos Açores, não é de estranhar que fosse conhecida como "a capitoa". Daí o título deste romance, que se lê de um fôlego, com as suas quase 400 páginas a serem um extraordinário fresco da sociedade faialense e picoense de há cinco séculos, e igualmente uma introdução ao mundo novo que os portugueses ajudaram a criar, pois desde as especiarias vindas da Índia e do que hoje é a Indonésia aos produtos do Oriente como as porcelanas chinesas tudo chegava à Europa e mesmo às ilhas, e faziam já parte do quotidiano, pelo menos dos mais endinheirados como D. Brites.

"O romance histórico é uma criação ficcional intemporal (personagens inventadas, amores, ódios, relações familiares, viagens, etc) que tem como pano de fundo uma determinada época. Não é uma recriação histórica em que os autores se limitam a acrescentar diálogos às narrativas das crónicas (e mesmo assim com erros). O historiador, sendo capaz de criar uma trama ficcional interessante, pode oferecer uma visão correta do passado numa linguagem acessível a leitores pouco informados. Ao mesmo tempo, através da ficção intemporal, podem apresentar visões críticas do presente", explica João Paulo Oliveira e Costa, em conversa com o DN. Percebo bem o que quer dizer, pois ainda me recordo de no seu anterior romance, A Estreia do Auto da Índia (também Temas e Debates), o enredo incluía crimes e uma investigação que se poderia descrever hoje como policial, mas a par da ficção percebia-se, por exemplo, o que foi a vida de muitas mulheres durante os Descobrimentos, que viam os maridos partir para terras distantes e ficavam anos e anos sem ter notícias deles, muitas das vezes nem sequer sabendo se estavam vivos ou não, até que alguns regressavam sem avisar. Desse anterior romance recordo ainda passagens sobre o impacto do Édito de Expulsão dos Judeus, trágico para Portugal por muito que D. Manuel I tivesse tentado minorar essa sua decisão exigida pela sua noiva castelhana.

A grande mais valia do historiador como romancista é, creio, a sua capacidade de descrever a época, caracterizando com verdadeiro conhecimento as sociedades. D. Brites serve aqui de ponto de partida para a história que A Capitoa conta, aliás as histórias, mas não é a sua personagem aquela que mais fascina o leitor. Rufino, D. Tristão, o casal Paulo e Maria, Fabiana, Cesária, são de uma riqueza extraordinária, produtos da imaginação de João Paulo Oliveira e Costa, mas credíveis. E depois há duas personagens fascinantes: o padre Clementino, um anão, e Heleninha, a simples da terra. Sobre elas, diz o autor: "O padre Clementino e Heleninha são duas personagens quase caricaturais, a segunda inspirada no tonto do Auto da Barca do Inferno. Ele representa a perseverança e o rompimento das convenções sociais. Ela representa a pureza das almas sem pecado, que pelas suas limitações não chegaram a comer da árvore do conhecimento, mas que são criaturas completas que pela sua voz ingénua nos sensibilizam para o discernimento, ou, noutro plano, como no livro, podem ser a própria palavra de Deus".

D. Brites de Macedo, mulher de Jos Dutra, o flamengo que foi o primeiro capitão das ilhas do Faial e do Pico inspirou o romance A Capitoa, de João Paulo Oliveira e Costa.

Para quem já visitou o Faial e o Pico, andou por Porto Pim e pela Horta e atravessou o canal para ver de perto o imponente Pico, há um prazer especial na leitura deste romance. Também João Paulo Oliveira e Costa confessa um profundo e já antigo amor por estas ilhas no meio do Atlântico, das nove só lhe faltando visitar o Corvo. E ter começado a escrever o romance num hotel do Faial, a pouca distância da Igreja das Angústias, onde D. Brites está sepultada, diz muito do envolvimento do autor com este livro, tal como com os outros, sendo que a alma de viajante não só lhe dá ideias como fornece informação que se soma àquela que recolhe dos documentos e dos livros.

Aprende-se muito sobre os Açores neste romance, também sobre um Portugal que no espaço de um século passou a estar presente em quatro continentes e três oceanos, um Portugal que fez pela primeira vez o mundo ter consciência de si, um Portugal que misturou produtos e gentes, como, aliás, ali no Faial, onde conviviam os flamengos vindos a bem com os africanos trazidos como escravos (mas alguns já pessoas livres). Também se aprende sobre Lisboa, sobre Ceuta e sobre Jerusalém.

Ensinar é só uma parte do segredo deste romance, a outra, mais importante, é fazer-nos transportar para outras geografias e épocas e, de repente, sentirmos que estamos em Porto Pim impacientes por a nau carregada com o sal de Setúbal não chegar. Um livro sobre os Açores escrito por um historiador que gosta do oceano só podia ser um grande livro, e até há uma piscadela de olho a quem está com saudades de regressar à Horta para um gin no Peter.


por Leonídio Paulo Ferreira, in Diário de Notícias | 12 de agosto de 2023
Destaque no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

Agenda
Ver mais eventos
Visitas
91,519,050