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Portugal leva jardim crioulo à Bienal de Veneza

É um projeto artístico a três o que Portugal leva à 60ª edição da Bienal de Veneza. Mónica de Miranda, Sónia Vaz Borges e Vânia Gala apresentam Greenhouse, um trabalho que interpela o nosso passado colonial.

Greenhouse é um trabalho multidisciplinar, concebido como um jardim crioulo. D.R.
Não nasceu para se ajustar às efemérides, mas é com gosto que o projeto artístico Greenhouse, que representará Portugal na 60ª edição da Bienal de Veneza (de 20 de abril a 24 de novembro), se associa às comemorações do cinquentenário da Revolução de Abril e da instauração do regime democrático no nosso país, por um lado, e do centenário de nascimento do líder da resistência guineense e fundador do PAIGC (Partido Africano para a independência da Guiné e Cabo Verde), Amílcar Cabral, assassinado em 1973.

Apresentado aos jornalistas pelas artistas-curadoras Mónica de Miranda, Sónia Vaz Borges e Vânia Gala, Greenhouse é um trabalho multidisciplinar, concebido como um jardim crioulo, o que, de imediato, nos remete para as memórias de fogo do colonialismo europeu em África. Aqui se fala de um tempo em que, no interior das plantações, viviam e trabalhavam em condições infra humanas, milhares de escravos (e depois deles, de trabalhadores contratados em condições pouco melhores) que, de forma clandestina, desenvolviam pequenos espaços contrapoder (ou contra-plantação, nas palavras das autoras), capazes de lhes assegurar alguma autonomia. Como sublinhou Mónica de Miranda, Greenhouse apresenta-se assim como “um trabalho feminino por oposição ao patriarcado e ao eurocentrismo, que, ao longo de séculos tem vindo a dominar o discurso sobre estas realidades.” Em foco estarão ainda as memórias das escolas e assembleias promovidas, quantas vezes no mato, em plena Guerra Colonial, junto das populações, na Guiné-Bissau mas também em países vizinhos como o Senegal, pelo próprio líder da resistência anti-colonialista, Amílcar Cabral.

Intervenção cultural e política
No cerne de tudo, estão os solos, que não são apenas realidades geomorfológicas, mas espaços de intervenção cultural e política. Com este trabalho, as autoras pretendem demonstrar que “a regeneração dos solos era indissociável do projeto da luta de libertação, algo que é desenvolvido da investigação de Amílcar Cabral,  o problema da erosão dos solos.” Recorde-se que, antes de ingressar na vida política, Cabral se dedicara à Agronomia, tendo sido, no seu tempo, o único aluno africano matriculado no Instituto de Agronomia de Lisboa.

O que Portugal leva a Veneza é, pois, um espaço expositivo com quatro vertentes: Jardim (Instalação, Espaço e Tempo); arquivo vivo (Movimento, Som e Performance); Escola (Educação, História e Revolução) e Assembleias (Público e Comunidades). O objetivo da equipa curatorial e artística é levar os visitantes a refletir sobre as relações entre natureza, ecologia e política e, naturalmente, as suas possíveis implicações, que são muitas. Essa pluralidade de leituras nasce, aliás, dos próprios perfis das autoras: Mónica de Miranda é artista visual; Vânia Gala é coreógrafa e Sónia Vaz Borges define-se como historiadora interdisciplinar militante. Une-as o trabalho de investigação constante que fazem em torno de temas como a construção de memórias e ainda o facto de todas serem afrodescendentes em Portugal.

Ao longo da Bienal, as autoras convidarão curadores e artistas de Angola, Benin, Brasil, Cabo Verde, Chile, França, Nigéria e Arábia Saudita para realizarem assembleias no espaço, desfazendo ainda mais noções rígidas de um pavilhão nacional ou de uma arte nacional e fomentando uma participação coletiva.

Com base na sua extensa investigação sobre as escolas revolucionárias dos movimentos de libertação e do internacionalismo, Sónia Vaz Borges organizará workshops que envolverão as comunidades afro-diaspóricas de Portugal e Itália, com um público física e linguisticamente diversificado, integrando no debate grupos normalmente marginalizados pelo sistema educativo, incluindo migrantes, refugiados, mas também pessoas com deficiências visuais e auditivas.

Nesta 60ª edição, a Bienal de Veneza propôs aos países participantes o tema genérico Foreigners Everywhere/ Estrangeiros em Todos os Lugares, lema usado por um coletivo de artistas de Turim que lutou contra o racismo e a xenofobia em Itália, no início dos anos 2000. A Representação Oficial Portuguesa, comissariada pela Direção-Geral das Artes, voltará a estar patente no Palácio Franchetti, situado nas margens do Grande Canal de Veneza.

No âmbito da representação oficial portuguesa nas Bienais de Arte e Arquitetura de Veneza, o Estado português seleciona, desde 2018, os projetos curatoriais que o representam, com base num modelo de concurso limitado, através de convite a vários curadores, garantindo deste modo que mais autores tenham a oportunidade de apresentar propostas artísticas. Para a representação de 2024, a comissão de apreciação foi constituída por André Tecedeiro, Eduarda Neves, João Mourão e Paulo Carretas.

No ato de apresentação de Greenhouse, o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, salientou que o reforço orçamental constante que, nos últimos anos, tem sido feito na representação de Portugal em Veneza nasce do reconhecimento da “importância da arte que se faz a partir de Portugal.” E concluiu: “A Bienal de Veneza é um lugar importante para projetarmos quer a nossa identidade, sempre em construção, quer o trabalho dos nossos artistas.”


por Maria João Martins in Diário de Notícias | 27 de fevereiro de 2024
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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