"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Exposições

"Mise en Place" de Margarida Gil

Exposição de escultura cerâmica de Margarida Gil, patente ao público no Palácio da Cidadela de Cascais entre 23 de março e 2 de junho de 2024

Montanhas, 2015/2016 (9 peças) Grés sujeito a várias queimas com vidrados em alta temperatura

23 Mar a 2 Jun 2024

Palácio da Cidadela de Cascais
Av. Dom Carlos I 246, 2750-642 Cascais

Inaugura sábado, 23 de março, às 17 horas

Mise en place é o mais importante antes da mise en scène – diz-nos a Margarida com malícia, como se pretendesse pôr em ordem a desordem. Sabendo que o que se procura ou encontra está dentro de um território em constante mutação, é com ironia que se afirma a preparação para que as coisas tomem o seu lugar. A suposta ordem implica várias pessoas, várias sensibilidades, relacionando-se e reverberando umas nas outras como as esculturas. Mise en place afirma a dificuldade de um plano para o reencontro com o lugar fundamental – o lugar do humano. Esta dificuldade reveste as esculturas da Margarida, as suas camadas de vidrados encantatórios e muitos tons de negro parecem procurar a presença que elude a linguagem, mas são-nos paradoxalmente familiares como um cais.

Porto de chegada ou de partida para uma viagem feita de enigmas. Há que estabelecer um plano – diz-nos – por aqui, mas é a própria autora que se desvia, porque, subitamente, encontra um tom esverdeado que traz consigo a água que vem das entranhas da terra ou que se vê no cume de uma montanha que não se pode escalar. Subitamente, repara no sorriso de um passaroco com uma gargalhada – afinal é a cara chapada de uma figura política que todos reconhecemos.

A preparação é um caminho revestido de humor, dos seus muitos e sábios antídotos. Caminho de maravilhamentos e encontros onde se pode reconhecer o território que veio das mãos, sem emendas, de baixo para cima. Mise en place prepara-nos para um caminho simultâneo de presenças e fantasmagorias. Montanhas que não se podem escalar como berço de ídolos que nos perscrutam; bocados expelidos de cerâmica como basalto mágico; pedras que trazem no bojo cores de vísceras e mistérios de alquimia; tesouros do fundo do mar; pássaros que se empoleiram em estacas carcomidas de sal, enigmáticos como esfinges, vindos de lugares onde a utopia pode afinal ser um espaço. 
André Almeida e Sousa (Curador)




Margarida Gil: uma história da Humanidade 

Primeiro veio a terra, com as suas montanhas altíssimas, isoladas, presenças absolutas no meio do nada. Como estacas na paisagem, inesperadas e inexplicáveis; podiam e deviam organizar-se em serras, mas escolheram ser originais. São róseas, azuladas, arenosas, argilosas, e outras negras, que hão-de expelir os “homens mágicos”, aterrados como esses “biscoitos” vulcânicos, depósitos da erupção. Isso já estava na Atlântida, negros pináculos rodeando um marco branco, lembrando o início dourado de uma civilização que, entretanto, acabou. A memória do início ainda lá está, como um farol, mitificada, mas os negros pináculos fazem suspeitar qualquer coisa de menos róseo, um incêndio, um mau encontro, um final dantesco.

As montanhas, no entanto, olham-nos com serenidade. Oferecem-se à nossa admiração. Olhando-as, e às outras peças desta história, não há nelas nada de esquivo ou furtivo. São o que são e aceitam essa manifestação sem juízo.

Primeiro veio a terra e depois veio o fundo da terra. Listosfera, mitosfera, biosfera. Incerta “evolução”. Mas o mito aqui não é logos, história da génese dita pela musa. É o corpo primitivo que não precisa de falar. É pré-mito, é ainda caos. Toda esta gente está no processo de nascer, a passar nas mãos do Criador. Para isso não há narrativa, só trabalho, acontecimento. Aparecem as figuras tribais, sem o peso de totems, embora na forma das estacas das palafitas se suspeite a mesma tensão elevatória – a verdade é que se pregam no fundo instável e perigoso da água. Água, aqui, só na lama do barro. Há, de vez em quando, um soupçon de cores marinhas, formas de coral. É um mundo que se lembra da água só no incabado das formas. Quase como inevitável lubrificação. Afastados do dentro, expelidos, eles tornam-se monstros gerados pela separação; misturados, fantasiosos, compostos de muitas mitologias; uma hidra que lembra uma esfinge, emparelhada com o seu exoesqueleto, uns diabos inocentes, provocantes e joviais, e daí a um fabulário reconhecível. São patos, são perdizes, são frangos, são perus, coisas em forma de papagaio, catatua, outras como galos e galinhas. Mas toda esta aviária se pode incluir no nome geral de “passaroco”. Já foram coisas que voaram, e essa possibilidade provavelmente ainda existe; domina a verticalidade do que já foi celeste ou aspira a uma espiritualidade rarefeita. Mas nada aqui fala da queda. Os bichos, entretanto, descobriram a caça, descobriram a dança. Provável- mente já nem lhes interessa voar. Enfim, é no tango que tudo se resolve. As cores claras e tradicionais do amor bailarino, os corpos entrosados na tensão do movimento justo, são o primeiro momento do pleno direito da horizontalidade. Do seu júbilo. Fundidos, o macho-galo e a sua passaroca esquecem o céu, e se subirem no ar, é agarrados um ao outro.

O que manda é o gesto que se faz, irrepetível, no momento. É no tango que exactidão e leveza se encarnam. Uma perna que se levanta, um pé que se projecta e o dorso arqueado do grande felino, temido e imitado. Uma esquina que se dobra e fica dobrada. Uma dedada em que se usa o polegar – tudo são impressões digitais. Acidentes de percurso que desenham o curso das coisas. Na história da humanidade a evolução não é evolução nenhuma, é apenas uma história entre muitas, faz-se um gesto que pode disparar em qualquer sentido, e segue-se o gesto que desvia do inacabado para se lançar a inacabar o outro gesto. O processo, diz a Margarida, “é mão é mais nada, toda eu vou estar naquele gesto; o primeiro gesto é o mais importante, é como no cinema, a primeira take é a melhor, a não ser que haja enganos e isso às vezes até nem é mau; mas o género que prefiro é o de peças pequeninas, com muito pouca intervenção minha; gosto do lado leve, nascido de um só gesto; gosto de perceber a tempo que está feita, que não lhe devo mexer, o pensamento só deve entrar aí, e é mais para mandar parar do que para continuar”. 

Diz que começou a fazer escultura pelos quinze ou dezasseis anos, por via de uma professora de filosofia que lhe deu barro. Daí para cá, fora uma interrupção por causa da vida que sempre se interpõe, nunca mais parou. Chama-lhe escultura, porque a intenção não é nem funcional, nem decorativa. Diz: “detesto a leviandade com que muitas vezes se trata a cerâmica, nunca tive nenhuma tolerância pelo amadorismo na Arte; mas, para mim, isto é escultura, e acho que se a vida tivesse sido diferente, eu teria seguido Escultura. É uma actividade para mim absolutamente natural. Aliás, não é por acaso que está muito ligada à filosofia oriental, à espiritualidade zen, a ideia, por exemplo, de fazer caligrafia empenhando o corpo todo e não apenas a mão, a aplicação gestual de uma só vez do traço samurai da pintura japonesa, e eu sinto isso, porque se trata de um acto único, ético; na cerâmica não se disfarça, a matéria é que manda; é mesmo o contrário da pintura a óleo, que anda ali de roda a dissimular as imperfeições”. Ao contrário, aqui “não se pode mentir, há um lado ético de que gosto muito, não aldrabar, não apagar, não disfarçar. Aliás”, diz a Margarida, “quando se alisa, quando se trabalha demais, por exemplo, no caso da porcelana, como tem memória, nós corrigimos, mas quando vai ao forno, a porcelana faz o que quer.” 

Luísa Costa Gomes (Escritora)

Biografia - Margarida Gil
Natural da Covilhã. Licenciatura em Germânicas pela Faculdade de Letras de Lisboa. Curso de Artes Plásticas do AR. CO., com projeto individual em Cerâmica. Realizadora de Televisão e Cinema. Assistente Convidada na FCSH da Universidade Nova.
Expôs recentemente no Museu Bordalo Pinheiro uma mostra de trabalhos seus, a que chamou TANGO. Usa o barro como matéria base da sua expressão em Pintura e Escultura, que foi ao longo da sua vida executando em paralelo com a sua atividade de Cineasta. 

 


 

Horário da exposição: de terça a domingo, das 10h às 13h e das 14h às 18h
(última entrada às 17h40)

>> Bilhetes
 

Agenda
Ver mais eventos

Passatempos

Visitas
92,105,028