Eduardo Lourenço: Os Fantasmas da Europa

por Álvaro Vasconcelos

O drama europeu – pois é bem um drama que todos os dias se representa – é feito como na heteronomia de Pessoa,
do drama de cada um dos actores europeus.

Eduardo Lourenço, Meio Século de Dramaturgia Política Europeia, 1999

Eduardo Lourenço: Os Fantasmas da Europa [1]

No período em que fui diretor do IEEI, tive o prazer e o privilégio de conviver, conversar e debater com Eduardo Lourenço, sobre Europa e sobre o mundo. Eduardo Lourenço foi um participante ativo em muitas iniciativas do IEEI nos anos que se seguiram à nossa adesão às comunidades, desde conferências em Portugal, Espanha e Brasil à publicação de uma série de artigos sobre a Europa. Desses artigos, pela sua importância, salientaria: “Meio Século de Dramaturgia Política Europeia”, Estratégia, n. 12/13, 1º semestre, 1999 e “Da Identidade Europeia como Labirinto», O Mundo em Português, n. 16, janeiro de 2001.

Eduardo Lourenço fala, como Pessoa, a várias vozes sobre a Europa – a voz convicta de um europeísta impregnado da concepção de uma União construída à imagem da França, onde teve residência desde 1949, voz da tribo portuguesa pois como escreveu “toda a emigração, como todo o exílio, reforçam a mitologia doméstica”.

O pensamento europeu de Eduardo Lourenço, um dos mais originais em Portugal, é uma mistura de realpolitik, a que ele chama grande tradição europeia, com uma convicção profunda de que a Europa tem um lugar singular na História, num sentido de profecia que atribui a De Gaulle.

Eduardo Lourenço era o último pensador português de uma geração que viveu os anos 30 e tem por isso uma consciência aguda do tribalismo europeu. “A utopia europeia… é – a resposta que se nos impôs ou impôs às nações pilotos dessa mesma Europa para domesticar, e desta vez, de mútuo acordo, a sua intrínseca barbárie, a sua demoníaca inquietude que fez delas (e de nós) o Fausto da história universal.” [2]

Para Eduardo Lourenço, as nações são os atores da Europa, assombradas pelos fantasmas da identidade. Nesta conceção afasta-se de europeístas como Habermas, da sua perspetiva kantiana na formulação do conceito de cidadania mundial, que resulta não de uma qualquer identidade nacional cultural ou étnica, mas  «do exercício dos direitos  cívicos» [3] como condição de construção de um demos europeu.

 Os pregadores de uma cidadania cosmopolita colocam a sua atenção nas reformas constitucionais europeias e no papel das instituições supranacionais. Nos textos de Eduardo Lourenço encontramos poucas referências às instituições europeias, encontramos sim a procura de entender as nações europeias, a sua cultura, e sobretudo o seu imaginário e a convicção que a única identidade possível para a Europa é a cultural.

A Dramaturgia política europeia  

O que apaixona Eduardo Lourenço é o drama das nações europeias, a busca das suas identidades num mundo caótico. Por isso escreve que para compreender as dificuldades da integração é melhor ler Tácito, o autor romano de Germania, obra etnográfica, «do que os discursos humanísticos de um europeísmo mítico com que ocultamos o nosso tribalismo estrutural» [4].

Para Eduardo Lourenço o grande ator europeu, pelo menos até á queda do Muro de Berlim, foram os Estados Unidos, o «único vencedor da II Guerra Mundial» que assumiu a proteção dos europeus. A Europa «viveu neutralizada entre os Estados Unidos e a União Soviética» [5], como os gregos do império Romano. Europa que foi possível porque as administrações americanas, desde o Plano Marshall, consideraram a construção europeia um objetivo «não só natural para os europeus, mas desejável para o equilíbrio mundial, portanto, para a sua própria política» [6].

O drama europeu é feito dos dramas de cada uma das suas nações. O drama da Itália vencida e dependente dos EUA, da Inglaterra «nem suficientemente forte para dispensar a Europa, nem suficientemente fraca para ser obrigada a aceitá-la» [7]. No centro do palco europeu está a Alemanha, que depois de ter – e por ter – representado o papel principal na tragédia absoluta, é «aquele que menos problemas põe ou se põe em relação à construção europeia» [8], mas é com timidez que sai do low profile a que a derrota a tinha obrigado.

A admiração do europeu Eduardo Lourenço vai para De Gaulle, que apelida de «último europeu» na sua recusa da neutralização americana e soviética, através da procura de autonomia política e militar – com todos os limites de tal política, pois mesmo a credibilidade da dissuasão francesa dependia da estratégia nuclear americana.

O Lugar de Portugal no drama Europeu

O primeiro ensaio de Eduardo Lourenço publicado em 1949, intitulou-se a  Europa ou o diálogo que nos falta . É um ensaio como ele me disse, inspirado  na  tradição da geração de 70, nomeadamente na obra de Antero de Quintal “Das causas da decadência peninsular dos últimos três séculos”, que prefaciou uma das suas reedições recentes. Para o jovem Lourenço, como para Antero, a causa da decadência de Portugal desde o século XVII foi o corte com a outra Europa, com o espirito europeu, que o isolacionismo da ditadura Salazarista iria agravar, sublinhando que «a primeira e fundamental exigência do espírito europeu é a liberdade». [9]

No drama europeu, concretizado o designo de Antero e Lourenço,  Portugal é um figurante, que se assume como tal. Como escreve Eduardo Lourenço, «Essa curiosa maneira de nos “separarmos” da Europa, ou de considerar que a autêntica Europa está separada de nós, traduz-se pela consabida distinção entre Europa para lá dos Pirenéus e Europa aquém dos Pirenéus» [10]. Por isso a Europa Connosco é o slogan que melhor traduz o nosso estar europeu: procurar nos outros o apoio necessário para «resolver os problemas próprios, alguns velhos de séculos» [11]. E mesmo quando a Europa trai o nosso europeísmo empenhado, impondo a austeridade, não alteramos essa visão pragmática.

Visão pragmática do ponto de vista económico que não era incompatível com a vontade de ter um contributo singular para a Europa – o “universalismo português“. 

Para Portugal, ainda mais que a Espanha, a Europa é cais de partida, muito mais que cais de chegada, pois «A nossa deriva extraeuropeia é deriva da própria Europa Ocidental no espaço planetário», mas esse cais, parafraseando Pessoa, é uma saudade de pedra, dos que ficaram no imaginário do Oriente e teimam em não regressar à Europa; por isso, para Lourenço «os portugueses de hoje, neste momento mesmo, podem mobilizar-se pelo último vestígio da nossa aventura oriental, o longínquo e, para muitos deles desconhecido Timor, como não fariam nunca por qualquer cruzada europeia» [12].

Lourenço sublinha que em 1992 «o primeiro-ministro, europeísta convicto, afirmou que, no fim de contas, Rabat estava mais perto de nós que Madrid» e ainda acrescenta «Não creio que se referisse a distancias geográficas, mas de alma» [13].

Os sinais são contraditórios sobre a capacidade que Portugal demonstrou para ser o promotor de um projeto de Europa Mundo, trazendo para a política internacional da União Europeia uma perspetiva de Europa aberta, aberta porque a sua identidade seria ser Mundo e porque assumira a relação com os outros como parte integrante da sua razão de ser. Para o português Eduardo Lourenço, «Se alguma coisa parece distinguir, a nível simbólico, a vocação histórica dos europeus é a sua convicção ou o seu desejo de não ter outra identidade que a da condição humana em geral; em suma, um destino não só empiricamente planetário como em parte o foi e é, mas ontologicamente universalista» [14].

Do discurso europeu de Portugal passou a fazer parte a importância das relações com África e a América Latina e a defesa do multilateralismo e das Nações Unidas – e a nomeação de Guterres para secretário-geral das Nações Unidas é também uma demonstração dessa visão. Mas não se viu nestes 30 anos de adesão Portugal ser fator de um grande projeto global da UE. O euro-atlantismo pareceu ser uma orientação possível para a nossa singularidade europeia, mas não passou sempre de um equívoco. Os Estados Unidos da América só muito marginalmente aparecem no imaginário dos portugueses e mobilizam as suas vontades, a não ser na exceção açoriana, e o voluntarismo político português mobiliza-se mais para a construção da lusofonia do que para a relação transatlântica.

Mas mesmo a lusofonia é para Eduardo Lourenço «uma selva obscura e voluntariamente obscurecida pela interferência ou coexistência (…) de leituras (…), mitologias culturais, de todo em todo não homólogas e, só no melhor dos casos, análogas» [15].

No Brasil, a nossa América, que pode dar sentido ao nosso atlantismo, vários são os autores, como o sociólogo Hélio Jaguaribe, para quem «Portugal pequena grande potência” exatamente pelo seu pendor “universalista”, poderia com uma apropriada vinculação com o Brasil transportar” para o âmbito interno da Comunidade, o peso mundial dessa cultura…” [16]

O Futuro da Europa

O drama europeu parece hoje encaminhar-se para o seu epílogo. As nações procuram sacudir o que consideram o jugo de Bruxelas, o projeto habermasiano de demos europeu nunca pareceu tão necessário, mas também tão difícil de alcançar.

A Europa fora dela, os Estados Unidos de Trump pareciam interessados num desenlace fatal.

O Reino Unido “A única nação que poderia dar um sentido englobante à Europa toda” [17], segue um caminho ilusório e se vê contaminada pelo neo nacionalismo, para espanto de Eduardo Lourenço.

A França continua órfã de De Gaulle e dividida por uma querela sobre a identidade fruto de “uma visão da laicidade de tipo religioso” [18] .

Portugal e Espanha, qual D. Quixote, querem salvar a Europa dela mesmo.

A Alemanha, a «boa Europa», é chamada a assumir o seu protagonismo, mas ainda manietada pelos fantasmas da sua História europeia.

Eduardo Lourenço alerta para que a busca das identidades europeias, o renascer do tribalismo, num mundo que perdeu as suas referências a todos os níveis, é uma ameaça mortal ao projeto europeu. Para ele as nações europeias, obcecadas com as suas identidades particulares, num continente que não pode ser assumido como nação, não procuram o melhor que poderiam retirar das sua pluralidade de identidades.

No poema La Pente de la Rêverie, Victor Hugo olha para si e aí vê o mundo. Hugo, que como bom humanista, pregou a utopia europeia, olhava para si como europeu. Foi o que fizeram muitos na Europa depois da Segunda Guerra Mundial, que se afirmaram europeus, recusando os nacionalismos mortíferos. Foi o que fizeram muitos entre nós também, apesar da nossa hiperidentidade, como diz Lourenço, ou por causa dela. Hoje muitos europeus, cada vez mais, olham para si em busca da identidade que os diferencie do mundo, que lhes dê uma razão de ser.

Desde 1993, com a crónica profética O icebergue, inspirada pelas guerras balcânicas e pelos sucessos da Frente Nacional em França, suponho, que Lourenço alerta para os perigos do renascimento do nacionalismo na Europa, nacionalismo que encontra um terreno propício numa classe média em estado de total perplexidade, de carência económica, cultural, mas sobretudo afetiva. Nacionalismo que fratura a Europa e é factor de uma nova bipolaridade, mas sem um projeto capaz de englobar a Europa toda, que tem que incluir a Rússia [19], segundo Eduardo Lourenço, a Europa está condenada à dependência da nova Roma, os Estados Unidos.

Mas Eduardo Lourenço deixa-nos uma pista para encontrarmos a tábua de salvação: a sociedade civil europeia, a que porta em si «Esta vocação de minorias, digamos, ”humanitárias”, por mero dever ético e natural consciência social, é tanto mais necessária quanto é verdade que a nova classe média ocidental está convencida que é o suporte da ideologia securitária que a preserva da descida ao inferno da marginalidade e da guetização social que dia a dia separa a humanidade em dois grupos sem comunicação possível» [20].

Nesta “hora zero” de um Mundo que perdeu as referências, é necessário construir a solidariedade humana “ .. ouvindo o Outro, que é o mesmo que nós somos, com uma atenção criadora e uma paciência ativa, digna de Penélope. Talvez assim, pouco a pouco, reencontremos um “sentido” para uma sociedade que, como o Titanic, singra em plena noite para um previsível Iceberg.” [21] Eduardo Lourenço termina assim o seu profético e catastrófico artigo com um alerta  que não podia ser de maior atualidade.

Neste suspense hitchcockiano em que vivemos sobre o futuro da União, reconciliar as identidades de Lourenço com o demos de Habermas parece ser o único caminho para um desfecho feliz. O próprio Lourenço o tinha proposto quando, perante o fracasso do Tratado Constitucional em França e a oposição britânica, temeu a desintegração da União e fez um apelo à cidadania europeia «Mobilizemo-nos com a Europa que quer ser Europa».


[1]Texto de uma conferência proferida na cerimónia de homenagem a Eduardo Lourenço, organizada pela Cooperativa Árvore, a 23 de Fevereiro de 2017, no Porto.

[2] Eduardo Lourenço, A Europa Desencantada: para uma Mitologia Europeia. Lisboa: Gradiva, 2001, p. 239

[3]Jürgen Habermas, Citizenship and National Identity: Some Reflections on The Future of Europe, in Praxis International, Volume: 12, No. 1, 1992.

[4]Eduardo Lourenço, «Da Identidade Europeia como Labirinto», O Mundo em Português, n. 16, janeiro de 2001.

[5] Eduardo Lourenço, Meio Século de Dramaturgia Política Europeia, Estratégia, n. 12/13, 1º semestre, 1999.

[6] Idem, ibidem.

[7] Idem, ibidem.

[8] Idem, ibidem.

[9] Eduardo Lourenço, Europa ou o Diálogo que nos falta, citado em Maria de Lurdes Tavares Martinho A França na cultura europeia de Eduardo Lourenço  https://infoeuropa.eurocid.pt/files/database/000044001-000045000/000044381.pdf

[10] Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou As Duas Razões. Lisboa, INCM: 3a ed., 990.

[11] Eduardo Lourenço, Do Colonialismo como Nosso Impensado, Lisboa, Gradiva, 2014.

[12] Idem, pag.315

[13] idem, pag 323

[14]Eduardo Lourenço, Da Identidade Europeia como Labirinto, O Mundo em Português, n. 16 Janeiro 2001

[15]Eduardo Lourenço citado por ANNE VENTURA & MARIA MANUEL BAPTISTA
Críticas e Pós-Colonialismo: Olhares Transatlânticos nas Críticas de António Candido e Eduardo Lourenço, Universidade de Aveiro/FCT

[16]JAGUARIBE, Hélio. “Portugal e Brasil perante a integração europeia”. Estratégia – Revista de Estudos Internacionais: Lisboa. IEEI. nº6 (1989). p.57-66.

[17] Conversa com o autor, 19 de Fevereiro de 2017

[18] Conversa com o autor, 19 de Fevereiro de 2017

[19] Conversa com o autor, 19 de Fevereiro de 2017

[20] Eduardo Lourenço, Crónicas quase marcianas. Lisboa: Gradiva, 2016.

[21] Iceberg , idem, p. 13