Mário Mesquita e o caso República

por Isabel Babo

O pensamento, a obra e a praxis de Mário Mesquita marcaram o jornalismo, tanto quanto o ensino nas áreas da comunicação, do jornalismo e da história contemporânea. A 25 de novembro de 2021, a Universidade Lusófona do Porto teve a honra de lhe outorgar o título de Doutor Honoris Causa, enaltecendo o notável valor do seu percurso.

Tendo eu analisado o caso República, ao nível da minha tese de doutoramento sobre A configuração dos acontecimentos públicos. O caso República e as manifestações nos Açores em 1975 (École des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris, 2001), colhi em Mário Mesquita análises e interpretações bem pensadas sobre esses acontecimentos. Em sua homenagem, proponho-me recordar, aqui, alguns recortes do seu pensamento sobre os meios de comunicação em Portugal no pós-25 de Abril de 1974 e, mais especificamente, sobre o caso República.

Na sua análise, Mário Mesquita reporta-se à atuação dos comunistas, no jornal República, em 1975, nos seguintes termos:

“No ‘caso República’, o PC não conseguiu impor o triunfo da sua estratégia, mas tão-pouco se confinou ao angélico papel de vítima da extrema-esquerda, conforme pretendeu fazer crer para minimizar efeitos negativos no plano interno e externo.

Nas suas linhas gerais, o PCP seguiu, em relação ao jornal dirigido por Raul Rêgo, uma ‘estratégia negativa’, que pretendia a sua ‘neutralização’. Nisso se distinguia da extrema-esquerda, que visava o imediato controlo do jornal. (…)

O comportamento do PCP denotava que se, por um lado, ponderava os riscos de uma tentativa direta de apropriação do jornal, por outro, não recuava quanto ao objetivo de silenciar uma voz crítica. A saída dos jornalistas comunistas e simpatizantes do República, antes da fase aguda do conflito, corresponde às duas preocupações: desvincular o PCP, em termos de opinião pública, de qualquer propósito de controlo da redacção; deixar mãos livres aos gráficos da comissão de trabalhadores para desencadearem o assalto final.” (M. Mesquita, 1994 a, p. 374)

Há a identificação de um motivo – calar a voz crítica do República –, mas de modo a libertar o partido comunista português, em termos de opinião pública, de qualquer propósito de controlo da redacção, mediante a saída prévia de jornalistas “comunistas e simpatizantes comunistas”, a fim de que os tipógrafos da comissão de trabalhadores pudessem ocupar o jornal.[1] Porém, o conflito não vai permanecer no nível problemático da participação dos tipógrafos no conteúdo do jornal, em nome da “dinâmica revolucionária” ou da invocada, na época, legitimidade revolucionária. Questão essa que põe em causa saber a quem compete a definição editorial de um jornal, cuja competência a lei de imprensa, elaborada no pós 25 de Abril, já alargara ao conselho de redacção.[2] Como Mário Mesquita bem esclarece, o problema que estava em jogo, nessa ocasião, era a possibilidade de um grupo controlar a imprensa.

 “O que estava em causa, no plano jurídico, era saber a quem compete definir a orientação dos jornais. A Lei de Imprensa já retirava ao director o exclusivo dessa competência, consagrando o direito de participação dos jornalistas através do conselho de redacção. Mas as correntes da esquerda e da extrema-esquerda portuguesas queriam ir mais além do que previa a legislação em vigor: visavam a participação, se não mesmo a preponderância, dos trabalhadores não jornalistas. A adopção desse critério conferia, na prática, o poder decisório ao sector gráfico, não só por ser, geralmente maioritário, mas também pela sua tradição de militância de esquerda.” (Mário Mesquita, 1994 a, p. 372).

Mário Mesquita, que fora jornalista do República de 1971 a 1975 e que, aquando da sua ocupação, se encontrava recém-saído dos quadros do jornal[3], na sua análise, e numa leitura retrospectiva do caso, como vimos, advoga que o partido comunista interveio, desde o início das ocorrências, mesmo se indiretamente, detendo responsabilidades em relação ao que se desenrolou. O jornal encerra dia 20 de maio de 1975 e Mário Mesquita considera que o seu desaparecimento ocorre justamente nessa data e não ulteriormente, quando reabriu com a comissão de trabalhadores.[4]

“Às seis da madrugada do dia 20, o edifício foi evacuado e os manifestantes saíram, sob proteção militar, de forma a evitar confronto físico. As instalações foram seladas. O República morreu, de facto, nessa madrugada de 20 de Maio. Os episódios burlescos que se seguiram acrescentaram apenas um breve e lamentável posfácio.” (M. Mesquita, 1987, p. 13)

Os comunistas pretendiam silenciar o República, como entende Mário Mesquita, e terão tido sucesso nesse propósito. Porém, como também se poderia antecipar, o conflito ultrapassaria o que estava em jogo inicialmente, tendo o partido socialista sabido reverter a seu favor as consequências políticas do caso:

“Este ‘novo’ República acelerou o curso dos acontecimentos da Revolução num sentido desfavorável ao poder gonçalvista. (…) A 19 de Julho, o PS organizou na Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, uma manifestação grandiosa, em que Mário Soares pediu, pela primeira vez, a demissão de Vasco Gonçalves.” (M. Mesquita, 1994 a, p. 371)

A inteligibilidade que vai prevalecer é que o caso República foi aproveitado pelo partido socialista para inflectir o curso do processo revolucionário. Com efeito, a trama do caso teve repercussões para além do próprio, levantando uma série de questões em que vários problemas foram convocados. Como analisa Mário Mesquita,

“O conflito do República transformou-se num episódio decisivo da luta política em que se jogava a natureza do regime português e, num plano mais vasto, o respeito ou desrespeito pela divisão do mundo em áreas de influência, consagrada em Ialta.” (Mário Mesquita, 1987, p. 9)

Ou seja, há um crescendo em generalidade e em consequências, e o caso é não somente um “episódio decisivo” na viragem da situação política nacional, como teve como efeito colocar o problema do regime político português ao nível da atenção pública internacional, tendo desempenhado um papel importante no desenrolar e no desenlace do processo revolucionário em curso (prec). O caso é, assim, inserido num campo problemático vasto e numa intriga que, estendendo-se, apresenta um conjunto de causas e consequências.

 “O caso do jornal República conferiu, a partir de maio de 1975, dimensão internacional ao problema da liberdade de Imprensa e da definição do regime político em Portugal. Em nome da Revolução e da liberdade de Imprensa destruiu-se o símbolo da própria liberdade de Imprensa. (…) Através do caso República discutiram-se a Lei de Imprensa, o controlo operário, a organização da empresa jornalística, os poderes do director e do conselho de redacção, o direito à informação, a unidade da esquerda portuguesa e francesa, o eurocomunismo, os regimes do Leste europeu. Mas o que estava em jogo ultrapassava, afinal, tudo isso e situava-se para além do destino da velha casa da Rua da Misericórdia, da vontade dos trabalhadores da Editorial República ou das questões específicas da Imprensa.” (Mário Mesquita, 1987, p. 9)

É em função dos efeitos conhecidos e do devir do processo político português que o caso República granjeia essa significação política, social e histórica. O seu significado está ligado ao devir da revolução e passa a ser percepcionado como “um ponto de viragem no processo político português” e um dos dois episódios políticos mais importantes de 1975, como defende Mário Mesquita em relação às transformações ocorridas nos meios de comunicação social, o que não pode ser avaliado senão retrospectivamente, em relação aos seus resultados:

“Os casos do jornal República e da Rádio Renascença constituíram, sem dúvida, os incidentes com mais graves consequências no curso dos acontecimentos políticos do ano de 1975.” (Mesquita, 1994 a, p. 377)

Isabel Babo

Reitora da Universidade Lusófona do Porto
Junho de 2022


Referências

Babo-Lança, Isabel (2006). A configuração dos acontecimentos públicos. O caso República e as manifestações nos Açores em 1975. Edições MinervaCoimbra.

Mesquita, Mário (1987 a). O Caso República ou o símbolo destruído, Cadernos de Imprensa, 1, Julho, pp. 9-30.

Mesquita, Mário (1987 b). A Regra da Instabilidade. Imprensa Nacional Casa da Moeda.

Mesquita, Mário (1994 a). Os meios de comunicação social, In Reis, António (org.). Portugal 2O Anos de Democracia (pp. 360-405). Círculo de Leitores.

Mesquita, Mário  (1994 b). O Caso República. Um Incidente CríticoRevista de História das ideias 16, Ed. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Mesquita, Mário & Rebelo, José (eds.) (1994). O 25 de Abril nos media internacionais, Edições Afrontamento.


[1] Como analisa M. Mesquita: “Os próprios autores do ‘saneamento’ colectivo da redacção do República assumiam a ilegalidade do seu comportamento, mas reivindicavam o direito de desrespeitar a lei, em nome da ‘dinâmica revolucionária’” (M. Mesquita, 1994 a, p. 371).

[2] “Na vasta polémica, nacional e internacional, sobre o caso República assumiu particular relevo a questão de saber a quem compete definir a orientação dos jornais. A Lei de Imprensa já retirara ao Director o exclusivo dessa competência, consagrando o direito de participação dos jornalistas através de pareceres a emitir pelo Conselho de Redacção. As correntes de esquerda e extrema-esquerda portuguesa, conforme ficou patente no debate do Conselho de Imprensa, querem mais: a participação, se não mesmo a preponderância, dos trabalhadores não jornalistas.” (Mário Mesquita, 1987 a, p. 20).

[3] Era, na época, diretor-adjunto do Diário de Notícias (de 1975 a 1978), tendo sido seu director de 1978 a 1986, assim como foi, igualmente, coordenador da secção política do Jornal Novo em 1975.

[4] Após várias peripécias, dia 18 de Junho de 1975, “o comandante Dias Ferreira do Copcon, responsável da reabertura do República, antecipa a reabertura do jornal para as 8 horas e 40, quando a entrada conjunta de todos os sectores do diário estava fixada para as 11 horas. O jornal é assim reaberto na ausência da administração. A chave de uma das portas é entregue à comissão de trabalhadores que, a partir desse momento, impedirá a direção e a redacção de entrarem. Na rua reúnem-se novamente leitores e manifestantes, o que ocasiona a presença dos militares.
(…) A partir desse dia, os jornalistas solidários com a direção serão impedidos de entrar nas instalações do República, nas quais, segundo eles, encontrar-se-iam também civis armados que não pertenciam ao jornal.
No dia 23 de Junho desfila nas ruas de Lisboa uma manifestação do PS com a participação dos jornalistas do República, que exibem uma enorme faixa onde se lê: ‘Jornalistas em luta – República livre – Liberdade de expressão’.” (Babo, 2006, p.46)
“Depois de cinquenta e dois dias de interrupção, desde o seu encerramento na madrugada de 20 de Maio, o jornal República reaparece na quinta-feira dia 10 de Julho, controlado pela comissão de trabalhadores e com uma comissão administrativa militar nomeada pelo Conselho da Revolução.” (Babo, 2006, p.47)