Síntese do debate “Os Estados Unidos e a NATO: uma relação a revisitar”

O primeiro debate inserido no ciclo de debates sobre o Conceito Estratégico da Defesa Nacional (CEDN) incidiu na dimensão atlântica e relação com os Estados Unidos e com a NATO. Nascido do projeto de recuperação do acervo documental do IEEI (CD-IEEI), o Ciclo é uma iniciativa do Centro Nacional de Cultura (CNC) e da Universidade Lusófona do Porto (ULP). O primeiro debate teve lugar no dia 11 de novembro, pelas 18h30, na Galeria Fernando Pessoa no CNC.

Esta sessão contou com as boas-vindas de Guilherme d’Oliveira Martins, na qualidade de Presidente do Grande Conselho das Artes do CNC, e da Presidente de Direção do Centro Nacional de Cultura, Maria Calado. Após uma palavra de boas-vindas e convite para as próximas sessões, Maria Calado prosseguiu realçando a retoma do CNC ao projeto de recuperação do acervo documental do IEEI para uma renovada segunda fase, mencionando a parceria afirmada do mesmo tanto com o Ministério da Defesa Nacional (MDN) como com a ULP. Este trabalho de recuperação e disponibilização dos documentos ao público, sublinha, é tarefa essencial de manter a cultura viva e de preencher lacunas na divulgação de material. Guilherme D’Oliveira Martins, em seguimento do comentário de Maria Calado, sublinhou a relevância do CD-IEEI afirmando que é uma ideia importante “não deixar morrer as iniciativas”. Esta, em particular, trata de manter o património que emergiu do continuado trabalho do antigo Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI), o mais importante think tank sobre relações internacionais português até aos dias de hoje, como realidade viva para o futuro. Finaliza frisando que o ciclo de debates é estratégico para Portugal, é uma reflexão pioneira e traz à ordem do dia as causas da cultura e da paz.

Na qualidade de moderador e antigo diretor do Instituto, Álvaro Vasconcelos relembra o esforço de cooperação entre o MDN, o CNC e a ULP, na recuperação do património do IEEI. O que o ciclo de debates sobre o CEDN pretende fazer é trazer o contributo que o Instituto foi dando ao longo dos anos da sua atividade para o debate sobre as opções estratégicas portuguesas hoje. Antes de conduzir o debate aos oradores, Álvaro Vasconcelos explicita o objetivo do debate do dia: refletir sobre o atlantismo – conceito que se foi alterando ao longo dos anos evoluindo do atlantismo ideológico do conceito de 1985, em que a Espanha era vista como um inimigo, para o euro-atlantismo do conceito de 1994. O conceito de 2003 regressa ao atlantismo ideológico com a subordinação à guerra do terror de Bush. O conceito de 2013 regressa ao euro-atlantismo, mas num contexto marcado pela crise financeira.

Abrindo o debate João Gomes Cravinho, Ministro da Defesa Nacional, começou por esclarecer a necessidade de revisão do CEDN face às alterações profundas que se deram desde 2013 até hoje. Situa, num primeiro momento, os conceitos historicamente, começando por relembrar a Lei da Defesa Nacional de 1982, que tinha por objetivo a normalização democrática entre poder político e poder militar, capacidade que se estende até à atual revisão do Conceito. Deixando explícita a relevância da NATO e das relações com os Estados Unidos na futura revisão do CEDN, o Ministro da Defesa enumera as perturbações que vivemos hoje nas relações transatlânticas, nomeadamente: 1) a influência da China e o significado do seu crescimento económico nas relações internacionais; 2) a saída americana precipitada no Afeganistão; e 3) a necessidade da União Europeia (UE) assumir responsabilidades no seio da NATO, especialmente após as graves mossas deixadas pela Administração Trump.

No que diz respeito às relações com a China, João Gomes Cravinho refere que a China é hoje de importância máxima para Portugal, assim como para a comunidade internacional, não só pelo poder económico que adquiriu nos últimos anos, mas também pela fricção existente entre os Estados Unidos e esta. Contudo, devemos evitar equiparar a China com a União Soviética por várias razões, entre as quais se destaca a clara diferença no peso económico que esta tem e que acabou por representar o fim da potência russa. Ainda assim, a China não pode ser tratada com descaso estratégico. Aprendizagem extrema disso foi a pandemia, que veio expor o facto de que as questões económicas têm de ser tratadas em termos estratégicos e em termos de resiliência. De facto, afirma, Portugal deve ser cuidadoso com a sua capacidade de resiliência, conceito que, explica o ministro, deve fazer parte do novo CEDN – em paralelo com uma linha clara e orientadora das relações com a China. Devem-se evitar, neste sentido, distinções maniqueístas e perceber, com lucidez e consciência, quais as prioridades da China. Ignorar o fator chinês e permitir a geração de vazios estratégicos no plano indo-pacífico seria “um erro grosseiro” tanto dos Estados Unidos como da NATO. Assim, é premente que a própria NATO reveja o seu conceito estratégico.

A saída “atabalhoada” do Afeganistão é outro caso explícito da história internacional recente que prova a necessidade da revisão das relações transatlânticas e do seu estatuto no CEDN. A saída do Afeganistão não era um facto surpreendente per se, – o que surpreendeu e chocou a comunidade internacional foi antes a forma como essa saída foi feita e o colapso das estruturas que resultou dela. Quando aconteceram os atentados de 11 de setembro – que afetaram a revisão de 2003 – gerou-se uma onda de solidariedade transatlântica, conforme era previsto no 5º artigo da NATO (um ataque a um membro é um ataque a todos os membros) que resultou na ocupação e permanência dos Estados Unidos no Afeganistão. Hoje a solidariedade humana exige que se repense esta saída americana e o seu papel na NATO.

Ao mesmo tempo, a situação no Afeganistão segue-se às dificuldades passadas pela NATO durante a Administração Trump, que questionou a sua utilidade e retirou fundos à organização. A recente Administração Biden promete reverter as alterações geopolíticas. A posição tomada demonstra, contudo, alguma ingenuidade quanto à extensão dos danos feitos às estruturas e confiança da comunidade da NATO. O diálogo profundo em que deve assentar a NATO sofreu graves entraves e não pode ainda ser restabelecido na sua totalidade com as feridas que estão ainda presentes, para as quais a saída do Afeganistão não contribuiu.

Finalmente, no que diz respeito à “autonomia estratégica europeia”, preocupação já presente em certa medida no CEDN de 2013, a perspetiva portuguesa deve ser a de apoio à afirmação da UE como ator estratégico de peso na cena internacional que é, ademais, do maior interesse português. Isto porque não existem, reitera, grandes divergências estratégicas entre o plano nacional e o plano europeu. Apesar disto, a estratégia europeia tem que integrar uma componente significativa de colaboração com os EUA. A convergência entre a UE e a NATO é essencial, sendo a autonomia estratégica europeia vital para o “burden sharing” de que falam os Estados Unidos. Portugal não deve alimentar a fantasia da UE substituir a NATO em termos estratégicos. Ainda assim, é de relevância sublinhar as mais valias europeias em termos estratégicos: apesar de os Estados Unidos possuírem uma esmagadora superioridade militar, a UE pode contribuir com os seus ativos, nomeadamente, da cyber-segurança, de uma maior mobilidade, e da sua inovação nas técnicas militares disruptivas.

Resumindo, diz, para Portugal as vertentes europeias e atlânticas são absolutamente necessárias e complementares, não devendo o próximo CEDN expressar qualquer ambiguidade neste sentido. Lembra, como nota final, que o desenvolvimento em termos estratégicos, seja ele em Portugal, na NATO ou na UE, não pode senão ser acompanhado por um desenvolvimento das Forças Armadas – muito pelo contrário.

Luís Valença Pinto acredita que esta revisão vai incidir sobre a questão Afeganistão e a resposta dos Estados Unidos, bem como sobre desafios provenientes do Médio Oriente e do Norte de África.

É igualmente referido que as dimensões marítima e europeia são fundamentais para questões ligadas à identidade, cultura e ao ambiente portugueses, mas estas devem ser complementadas. Este CEDN deve, assim, ser mais holístico, flexível e útil e não se limitar a um documento sem praticidade, ao contrário do que aconteceu nos conceitos anteriores. Os CEDN anteriores falharam sempre na expressão das questões políticas, remitindo-se a serem meras “declarações de intenções” e ao campo militar. Simultaneamente, a despeito da progressiva abertura dos CEDN à ideia cooperativa e à questão humana, a separação interna/externa inibe uma visão holística. Acrescenta, neste sentido, que esta revisão é tanto mais importante se considerarmos o contexto no qual o CEDN de 2013 foi feito: numa altura em que não existia consenso e era preciso legitimar as pretensões da TROIKA.

No que diz respeito à questão transatlântica, os CEDN foram corrigindo a inicial confusão que identificava os Estados Unidos com a NATO e evoluindo no sentido de uma complementaridade entre a defesa europeia e as prioridades estratégicas americanas e da NATO.  Que opções existem, então, hoje para a NATO e para os Estados Unidos? Não existir apenas no atlântico sul, mas apontar na direção da bussola estratégica europeia, valorizando a sua posição na Europa e na NATO; recusar qualquer contradição entre a Europa e o Atlântico; não tendo a priori como garantido que seja possível realizar no imediato a revisão do Conceito da Aliança; auscultar o empenhamento estadunidense na NATO pós-Administração Trump; e dar as suas respostas no seio da UE. Ao mesmo tempo, a legitimidade democrática deve fazer parte das prioridades portuguesas e europeias. Portugal deve, ainda, contribuir no sentido de alimentar o “burden sharing” por parte da Europa, especialmente no Médio Oriente. Deve também evitar redundâncias e contradições com a NATO e a UE – assim como a marginalização europeia na Aliança. Salienta que a revisão deste conceito será fixada na relação com a NATO e nas divergências que esta tem com os EUA – sendo a prioridade o Indo-Pacífico. Conclui a sua intervenção recusando a pretensa de que as dificuldades se cingem à relação UE-EUA, e que, ao invés desta premissa, é preciso pensar o debate interno da NATO em questões essenciais, mas especialmente no que diz respeito à violação dos direitos humanos.

António Figueiredo Lopes era Secretário de Estado da defesa aquando da elaboração do primeiro CEDN em 1985. Lembrou que desafiou então o IEEI a iniciar um debate sobre as prioridades estratégicas portuguesas dando o seu testemunho pessoal sobre a importância do IEEI na elaboração do Conceito.  O CEDN surgiu para definir as grandes opções estratégicas portuguesas que deveriam servir de base para organizar um Ministério da Defesa Nacional e implementar a Lei de Defesa Nacional de 1982. Um outro dos seus objetivos era o do alargamento das questões estratégicas à sociedade civil – convicto de que toda a sociedade devia ser envolvida nas questões de defesa nacional. No primeiro debate nacional sobre o CEDN, organizado, como explicava antes, pelo IEEI em 1984, tratava-se de perceber e pensar sobre o que seria um CEDN. Em 1985, testemunha, o CEDN era apresentado à Assembleia da República e aprovado em 1986, integrando os contributos dos deputados.

 O CEDN assentava em três princípios basilares: opção europeia, a valorização do mar e a dinâmica transatlântica. Hoje Figueiredo Lopes destaca como questões essenciais no traçamento das opções estratégicas as divisões entre os Estados; as alterações climáticas, a segurança humana; e a detioração das relações União Europeia-Estados Unidos no rescaldo do Afeganistão e da Administração Trump, apontando para a necessidade, mais do que nunca, de fugir à tentação da narrativa da bipolaridade.

Ana Gomes centrou a sua intervenção no enquadramento europeu das relações transatlânticas. Para Ana Gomes o CEDN necessita afirmar uma verdadeira vocação democrática. Também as estratégicas europeias e da NATO revelam dificuldade de convergência com a sociedade civil e eficácia no cumprimento dos seus objetivos. Vejam-se as dificuldades europeias no Mediterrâneo. Ao mesmo tempo existe uma clara necessidade de reforço do seu papel na NATO.

Com a crise financeira de 2008, assistimos à compra de estruturas essenciais e estratégicas pela China. Este investimento Chinês tanto na Europa como em Portugal, através da Rota da Seda, enfraquece o poder estratégico europeu. Em Portugal considerou-se a cedência de facilidades nos Açores à China, apesar das relações privilegiadas com os Estados Unidos. No rescaldo da crise, a Europa vê-se fragilizada também pelo impacto Trump na NATO, pelo Brexit e pela emergência de uma China autoritária, com possíveis pretensões hegemónicas, que não se guia pelas regras da comunidade internacional, tendo questionado a legitimidade da OMS.

Para Ana Gomes, é necessária uma aproximação e colaboração direta com os Estados Unidos. Taiwan, afirma, pode vir a ser um “make it or break it” para a comunidade internacional e para as relações transatlânticas. O CEDN deve, tendo em conta a encruzilhada internacional contemporânea, definir melhor a autonomia estratégica no seio da União Europeia, através de um músculo militar forte. Não pode, ao mesmo tempo, ignorar um diálogo consciente e cuidadoso com a China.

Aberto o debate, três questões essenciais surgiram:
Qual o efeito da Rússia e da inatividade europeia?
E se o Trump volta?
Que NATO depois do Brexit?

Todas estas questões pareciam desaguar na mesma resposta: a Europa precisa de uma melhor resposta política – e de uma definição política clara – que não se deixe chantagear, como aconteceu com a questão dos refugiados na Turquia e com a visão mercantilista, liderada pela Alemanha, das relações com a China; que não se deixe ameaçar pela Rússia, como aconteceu na invasão da Ucrânia; e que se defina no pós-Brexit. A relação com os Estados Unidos, mesmo sem Trump, não será fácil. A obsessão atlantista desapareceu, sendo agora necessário, mais do que nunca, substituí-la por uma vocação clara e flexível das relações euro-atlânticas, por uma autonomia portuguesa e europeia, e um empenhamento sério na capacitação da NATO.

Jéssica Moreira (CD-IEEI), com o apoio das alunas da ULP:
Ana Rocha, Leonor Brás, Marta Santiago e Renata Araújo