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Património Imaterial

Bonecos de Estremoz

País: Portugal
Distrito: Évora
Concelho: Estremoz

Figuras no Museu de Estremoz Foto Sara Matos/ Global Imagens O artesão Afonso Ginja na sua oficina Foto Sara Matos/ Global Imagens Figurado de barro de Estremoz de autoria de Afonso Ginja Foto Sara Matos/ Global Imagens Perpétua e Maria Inácia, as Irmãs Flores, na sua oficina Foto Sara Matos/ Gobal Imagens Maria Inácia a modelar uma figura de barro Foto Sara Matos/ Global Imagens Perpétua pinta uma figura de barro Foto Sara Matos/ Global Imagens "Amor é cego", uma das figuras típicas de Estremoz Foto Sara Matos/ Global Imagens Hugo Guerreiro, diretor do Museu de Estremoz Foto Sara Matos/ Global Imagens
Tipo de Património
Património Imaterial
Descrição


A UNESCO classificou como Património Cultural Imaterial da Humanidade a produção dos "Bonecos de Estremoz", em barro, uma arte popular com mais de três séculos.
 É uma arte popular que começou por ser realizada só por mulheres.

Bolinhas de barro que se transformam em rostos. Rolinhos que se moldam até serem braços e pernas. As mãos de Maria Inácia Fonseca vão trabalhando em peças minúsculas, distraidamente, enquanto ela conta como começou a fazer bonecos quando tinha apenas 15 anos e se tornou aprendiz da mestra Sabina dos Santos. “Ela e o irmão, Mariano da Conceição, eram os responsáveis pela Olaria Alfacinha e dos poucos que faziam bonecos aqui em Estremoz nessa altura”, lembra Maria Inácia. Depois dela, também a irmã Perpétua foi trabalhar como bonecreira.

“Não era uma profissão muito bem vista”, recordam. Foram tempos difíceis. “Aqui em Estremoz ninguém ligava muito aos bonecos, começaram por ser os estrangeiros a querer comprar.” Só nos anos 1980, com a proliferação das feiras de artesanato, o seu trabalho começou a ter mais visibilidade. Hoje, com 60 e 59 anos, as Irmãs Flores (apelido que foram buscar à mãe para assinar a sua arte) são das mais conhecidas artesãs da terra.

A decisão sobre a inscrição na Lista Representativa do Património foi tomada durante a 12.ª Reunião do Comité Intergovernamental da Organização para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, que vai decorreu na Coreia do Sul, de 4 e 9 de dezembro de 2017.

Maria Inácia dá forma aos bonecos de barro - hoje “infelizmente” já não há barro de Estremoz, mas um muito parecido, comprado em São Pedro do Corval - enquanto Perpétua se dedica à pintura, procurando o mais possível os pigmentos originais. “Isto é uma arte que não mudou muito. Só o forno é que já não é a lenha, é elétrico, o que nos facilita muito a vida. Mas o resto é tudo igual ao que se fazia há 40 anos.”

É nessa técnica que se baseou a candidatura: “Uma modelação que é única, com base na bola, no rolo e na placa. E no vestir o boneco. Cada boneco é feito por camadas”, explica o historiador Hugo Guerreiro, diretor do Museu Municipal de Estremoz. “Obviamente que depois há toda uma estética associada, muito ligada ao mundo rural alentejano e também à devoção, à espiritualidade do povo. Mas o grosso da candidatura está no saber fazer o boneco.”

Três séculos de história

Hugo Guerreiro chegou ao museu em 1998 e ganhou com o então diretor, Joaquim Vermelho, o interesse pelos bonecos. “Eu era de Évora e nunca tinha ouvido falar dos bonecos, como é que era possível?” Quando, ao assumir a direção em 2002, começou a trabalhar sobre os bonecos, Hugo Guerreiro percebeu o quão pouco se sabia sobre a história desta arte. “A tradição dizia-nos que isto era trabalho de oleiro mas nos livros das taxas dos ofícios, do século XVIII, não havia qualquer referência aos bonecos nas listas das peças feitas por oleiros. Porquê?” Pesquisou nos livros de notário, à procura de encomendas; pesquisou nos livros das décimas, onde se indexavam as moradas de todas as pessoas que exerciam um ofício. E nada.

“Fui-me intrigando até, por felicidade, encontrar uma nota numa ata de vereação de 10 de outubro de 1770”, conta o historiador. Nessa sessão de câmara discutia-se uma petição ao rei feita pelos oleiros que queriam proibir as pessoas não examinadas de exercer o ofício. Mas as mulheres de Estremoz, as “boniqueiras”, como eram chamadas, irrompem por ali adentro e dizem: “Nós não somos um ofício regulado, portanto não temos que seguir essas regras”. E a câmara aceitou que elas continuassem a sua arte. “Isto não era considerado um ofício, não estava regulado como tal. As mulheres não trabalhavam, faziam curiosidades.” O primeiro homem de que temos notícias a fazer bonecos de barro será da segunda metade do século XIX, um tal Mestre Cláudio.

O trabalho de pesquisa de Hugo Guerreiro passou, então, por falar com os artesãos mais antigos da terra e também pelo estudo da coleção existente no museu, que inclui dois núcleos muito importantes: a coleção vinda em 1941 da Escola de Artes e Ofícios; e a coleção doada em 1971 por Júlio Reis Pereira, constituída por 375 figuras. Em colaboração com o Laboratório Hércules, da Universidade de Évora, estão a ser feitas análises às peças (a pigmentação, os materiais, etc.) que têm confirmado aquilo que os historiadores já sabiam: que as peças mais antigas são de princípios do século XVIII.

Neste momento, a coleção do museu é composta por mais de mil figuras - mas Hugo Guerreiro bem gostaria de poder contar com algumas peças que estão noutras coleções, como do Museu Nacional de Arqueologia, do Museu de Etnologia ou do Museu de Arte Popular. “Talvez, agora, com o impulso da classificação, seja possível chegar a um acordo com essas instituições.”

Dos santos ao “Amor é cego”

Percorrendo a exposição do museu é visível a evolução das figuras: “O boneco de Estremoz tem um cariz popular. As pessoas não tinham dinheiro para uma imagem de madeira, então tinham uma de barro. Mesmo em ermidas e igrejas, se não havia dinheiro para uma Santa Luzia espampanante, barroca, arranjava-se uma santa de barro. Era a proteção dos pobres”, explica Hugo Guerreiro. As primeiras figuras eram, portanto, os santos, como Santo António, São João, Nossa Senhora da Conceição. E, também, desde muito cedo, os presépios, com os quais começaram a aparecer as figuras profanas: os pastores, os reis e depois toda a gente que vinha adorar o Menino. Entre as figuras do século XIX, já mais realistas nos seus traços e roupagens, encontramos os diferentes ofícios e até representação de cenas quotidianas, como a matança do porco. E muitas mulheres. Uma dama à janela, uma mulher servindo chá, outra limpa o rabo a um bebé. “Isto faz todo o sentido porque as bonecreiras eram mulheres. Os homens nunca se iriam dar ao trabalho de fazer estas cenas”, explica. Hugo Guerreiro inventariou mais de 90 bonecos que compõem o “Figurado de Barro de Estremoz”, como os populares “Amor é Cego” e “Primavera”.

Algumas dessas figuras datam já do século XX. Após um período de decadência, foi com a Escola de Artes e Ofícios, fundada em 1925, e depois durante o Estado Novo, que se procurou reavivar a tradição e formar alguns bonecreiros (como Sabina Santos e Mariano da Conceição). Neste momento, serão uma dúzia os artesãos que trabalham em Estremoz. “O principal objetivo da classificação, além da valorização dos artesãos, é dar continuidade à arte, mostrar aos jovens que há aqui algo que é identitário e que tem futuro e que pode ser uma profissão”, diz Hugo Guerreiro.

Um trabalho de paciência e arte

Mas não é fácil convencer os jovens a trabalhar nos bonecos. “É preciso gostar muito porque isto é uma arte”, diz Afonso Ginja, de 67 anos, que tem a sua oficina perto do castelo. “Dá trabalho e leva muito tempo”, explica, mostrando como cada bocadinho é moldado isoladamente. Depois é preciso deixar secar bem cada uma das pecinhas para as “colar”. “O boneco nasce e vai-se vestindo, pedacinho a pedacinho. Leva muitas festinhas”, diz, enquanto dá forma a um burro de barro, que depois ainda há de levar um alforge, um pastor e respetivas roupas. A seguir ainda tem de ir ao forno a mais de 900 graus durante dez a doze horas. “Não há cozedura nenhuma em que não se parta uma peça. Ou duas, ou três”, diz, resignado. E, por fim, falta a pintura e o verniz, que é geralmente tarefa da mulher, Matilde.

“E depois é esperar que se vendam.” As peças mais baratas são os apitos que custam oito a dez euros. Uma figura de tamanho médio custa cerca de 40 euros. Uma procissão com 60 peças pode custar entre mil e 1700 euros. “Não é barato, mas são peças únicas, tudo é feito à mão”, justifica Maria Inácia. Cada bonecreiro tem a sua imagem de marca e reconhece as suas figuras. Afonso Ginja, por exemplo, gosta de fazer as caras mais pormenorizadas, as mãos grandes, as articulações dos braços e das pernas mais naturais, dando algum “movimento” aos bonecos. “Estamos sempre a inovar e a criar figuras, mas mantendo a tradição.”


por Maria João Caetano in Diário de Notícias | 2 de dezembro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

Data de atualização
13/12/2017
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