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Francisco de Sousa Tavares (1920-1993)

A direção do Centro Nacional de Cultura, no ano em que comemora 75 anos de vida, assinala o centenário do nascimento de Francisco de Sousa Tavares. 

Francisco e Miguel Sousa Tavares, à esquerda Jorge Sampaio, na libertação dos presos políticos a seguir ao 25 de Abril.  © Arquivo DN

Foi a grande alma do Centro, a partir de 1957, sem cuja determinação, entusiasmo e inteligência, não teríamos sido na sociedade portuguesa o que fomos, na afirmação firme dos valores da liberdade, da cultura e da democracia. Daí a nossa sentida homenagem. A sua memória está bem presente em todos nós – como assinalamos na Sala histórica do CNC que invoca Sophia de Mello Breyner Andresen e Francisco de Sousa Tavares.

O HOMEM DO LARGO DO CARMO

por Miguel Sousa Tavares, 2014-2020

Em 1996, por iniciativa desse cavalheiro e editor de antigo brio, que foi Mário Figueirinhas, os filhos de Francisco de Sousa Tavares (FST) procederam à edição de parte dos seus escritos políticos, produzidos entre 1975 e 1993, o ano da sua morte, e constantes dos seus editoriais enquanto director de “A Capital”, durante oito anos, e, posteriormente, como colaborador do jornal “Público”. O trabalho imenso de selecção dos textos foi feito então por Miguel Lobo Antunes, com um critério e uma atenção que respeitou absolutamente aquilo que foi o mais importante e marcante da intervenção jornalística de FST.

Em 2014, a editora clube do Autor voltou a pegar no projecto, restringindo-o porém a uma dimensão mais consentânea com uma obra que, reflectindo o essencial do pensamento e da intervenção política de FST, fosse mais acessível ao público. Coube-me então a tarefa de, partindo dessa primeira selecção, restringir os dois volumes maciços então publicados a um só a que dei o título de "Francisco de Sousa Tavares: uma voz na Revolução". Procurei fazê-lo atendendo sobretudo a dois critérios: o critério histórico e o critério doutrinário. O primeiro, levou-me a colocar especial ênfase nos “anos de brasa” de 1975 em diante – em que, em grande parte, se decidiu o futuro do país nas décadas seguintes e de que ele foi uma testemunha privilegiada, próxima e actuante. Julguei e continuo a julgar que isso poderá ter interesse para aqueles que não viveram ou que já esqueceram esse período, em que tudo, para o mal ou para o bem, estava ainda por decidir. O segundo critério, o doutrinário, visou guardar para memória futura o pensamento político de alguém que, por vezes de forma demasiado acalorada ou até errática, outras vezes de forma luminosa, ousou, todavia, exercer até à exaustão o imenso prazer e a indomável liberdade de pensar pela própria cabeça. O que não foi nada pouco, num país de tantas Excelências e conveniências.

Hoje, ao assinalar a passagem dos 100º aniversário do seu nascimento, em Lisboa, recupero esse meu texto de 2014, pois penso que, no essencial, tudo o que eu poderia dizer sobre o senhor meu pai está aí dito e tudo o que acrescentasse agora seria despiciendo. Apenas, talvez, pudesse dizer ainda que a sua voz me faz falta muitas vezes - que acredito que nos faz falta - e que, nestes tempos tão incertos e tão intimidantes como os que vivemos, homens de coragem, como ele, são sempre bem-vindos.

Ao reler todos os seus textos, pude, uma vez mais, constatar a alternância entre a intervenção política, imediata e inadiável, sobre aquilo que acontecia no momento – fruto da sua condição de director de jornal e testemunha do seu tempo - e a persistência de um pensamento político anterior, fundamentado e para além do rescaldo dos dias. Porque ele sempre viveu intensamente a política, primeiro como imperativo cívico, depois, e sobretudo, como exercício intelectual que o fascinava. Quando se assume como social-democrata, anti-colonialista, monárquico, anti-regionalista ou, antes de mais nada, defensor da liberdade como valor primordial por si mesmo, FST não o faz apenas porque os embates do dia o levem a definir-se em cada querela, mas porque isso era o resultado de um pensamento profundo, meditado e estudado, muito anterior a Abril de 74 e, no essencial e apesar da inconveniência, imune às vicissitudes de Abril. Concorde-se ou não, goste-se ou não. Ele não nasceu politicamente em 25 de Abril de 1974 e não morreu intelectualmente no dia seguinte. Estava antes e continuou depois – coisa que tantos oportunistas do 26 de Abril jamais lhe perdoaram. A sua formação e o seu pensamento político não advinham nem de modas nem de adesão a movimentos colectivos e instantâneos de bem pensar – e, por isso, com inteira sinceridade e até inadvertida incautela, foi capaz de deixar escapar esta frase admirável: “Sempre me horrorizaram os que se servem da fé dos outros para negociarem o mundo”.


Não se esperará de um filho que ele proceda a uma análise isenta do que foi o seu pai. Nem tentarei fazê-lo, nem me sentiria bem a tentar fazê-lo. Mas, se o guardo na memória como pai – que é território íntimo e impartilhável - sempre o vi também do ponto de vista do cidadão – apenas bem mais próximo do que os outros. E é como cidadão próximo, e não como filho, que me permito apenas resumir o essencial do seu carácter: impulsivo, generoso, por vezes caótico, de uma cultura histórica e política rara e apaixonada, de uma inteligência que às vezes cortava a direito como uma lâmina que até podia ferir e magoar, um ser indomável, instintiva e ferozmente livre e, acima de tudo, aquilo que para mim será sempre inesquecível: de uma coragem inaudita. Coragem intelectual, pessoal, física. Era um homem sem medo, numa terra cheia de homens com medo.

Muitas vezes até, dei comigo a meditar se essa sua incontrolável ausência de medo era coragem ou apenas inconsciência. “Porque os outros caminham à sombra dos abrigos, mas tu vais de mãos dadas com os perigos”, eu vi-o fardado de oficial de Cavalaria para assaltar o Regimento de Caçadores 5, numa conspiração falhada algures nos anos sessenta, vi-o assinar papéis que tantos que depois se revelaram revolucionários se escusaram então assinar, ouvi a sua tonitruante e reconfortante voz aos gritos do lado de fora de uma esquadra de polícia para onde alguns estudantes, eu incluído, tinham sido arrastados por andarem a apelar ao voto nas listas da oposição, vi-o sem quebrar nas deprimentes horas de visita das segundas-feiras aos presos políticos do Forte de Caxias e vi-o, enfim, no final daquela inesquecível manhã, de megafone em punho, anunciando a liberdade. De tudo isso, e muito mais ainda, eu lembro-me. E devo-lhe.

Por isso mesmo, escolhi para a capa desse seu livro a fotografia emblemática de FST encavalitado na guarita do Quartel do Carmo, na manhã do dia 25 de Abril de 1974. Num dos textos aí recolhidos, ele conta a história desse momento e desse dia, com a autoridade histórica de quem o viveu na primeira pessoa. Mas, para mim – que cheguei tarde ao Largo do Carmo, mas ainda a tempo de o ver lá empoleirado na guarita – tudo fez sentido. Que o único civil que, às horas ainda incertas da Revolução, estava ao lado dos militares revoltosos da coluna de Salgueiro Maia a expor-se daquela maneira, fosse ele, fazia todo o sentido. Eu sabia que ele só lá não estaria se não pudesse.

FST foi, simbólica e efectivamente, o homem do Largo. O homem que esteve no Largo do Carmo, mas que também esteve sempre ao largo do que parecia mais fácil. Foi oposicionista no Estado Novo, quando lhe teria sido bem mais fácil e conveniente, por todas as razões e circunstâncias, ter sido situacionista ou, pelo menos, acomodado. Foi social-democrata e violento adversário dos comunistas no PS, quando o PS via isso como uma traição de classe ou uma inconveniência conjuntural. Continuou social-democrata no PSD, quando o PSD via isso como um perigoso esquerdismo e uma excrescência revolucionária, até hoje mantida. Foi católico, mas enfrentou a hierarquia da Igreja pela sua colaboração com o salazarismo ou pela sua oposição à despenalização do aborto. Arrasou a colonização portuguesa e a sua suposta “missão civilizacional”, mas não se coibiu de criticar a “descolonização exemplar”. E até se lembrou de voltar a ser monárquico, já no final da vida, e num país onde a República e as míticas comemorações do 5 de Outubro, mais a inevitável filiação maçónica (que ele gozava e execrava) são um dogma pátrio e um recomendável cartão de visita. Para o bem e para o mal, certo ou errado, esteve sempre ao largo, como se não desejasse terra – ele, que, no fundo de si mesmo, creio que nunca desejou outra coisa.

A pergunta que, obviamente se me impôs ao colaborar então nessa edição e seleccionar os seus textos, foi se tudo isso, afinal, faria ainda algum sentido. E confesso que parti para a empreitada com um sentimento misto, entre o filho que quer perpetuar a memória do pai e o cidadão, também jornalista, que deve um olhar desapaixonado às coisas que o passado é suposto ter sepultado. Mas, ao reler uma vez mais o que ele então foi escrevendo, dei-me conta, como acima disse, que há duas finalidades que se mantêm úteis e, portanto, actuais: o seu testemunho pessoal, vívido, angustiado ou apaixonado, dos anos fundadores da democracia portuguesa, e o repositório de um pensamento político sobre Portugal que, vindo de trás e alicerçado no seu profundo conhecimento e reflexão sobre a história do país, atravessou os tempos conturbados da Revolução fiel a si mesmo e a uma linha de rumo que de há muito traçara. Em 25 de Abril de 1974, FST não descobriu nada que não soubesse antes, não passou a pensar nada que já não pensasse antes – como bem deixara testemunhado num livro quase clandestino (pois que apreendido pela Censura logo na tipografia), publicado em 1960, com o título “Combate Desigual”. Aliás, se me é permitido o elogio, justamente a constatação de que o combate pelas ideias em que acreditava seria sempre desigual e solitário, que seria sempre fora de tempo e politicamente desajustado, é aquilo que eu mais admiro nas suas ideias e na sua persistência – mesmo quando delas discordei ou discordo ainda. E, todavia, para alguém que, na sua contemporaneidade, foi quase sempre olhado como extravagante ou inconveniente, o que hoje, relendo o que escreveu, mais me impressiona é constatar que se tratava justamente do contrário: não há aqui sombra de extravagância ou iconoclastia. Pelo contrário, apenas bom-senso, capacidade de ver mais além e – o que bastas vezes lhe foi fatal – o fatal dom de adivinhar e perceber antes de tempo.

Por isso mesmo, procurei também, e como disse, seleccionar textos que eram, a seu tempo, intemporais, fruto de uma reflexão sobre Portugal, antes, durante e depois da Revolução. Alguns dos seus temas predilectos: a terra e a agricultura – o seu uso, fruição e aproveitamento; o sistema constitucional e eleitoral; os partidos e a formação de uma élite politica no governo da nação; a liberdade de imprensa e de pensamento; a necessidade de formação de uma maioria politica capaz de reformar o Estado e o país de uma vez por todas.

Mas, para além desses temas (que hoje me atrevo a dizer que seriam consensuais e inquestionáveis, como programa político), escolhi também guardar alguns dos seus textos que foram, por assim dizer, uma das suas imagens de marca: a facilidade instintiva, a generosidade incontrolável, de se indignar com o que lhe parecia insuportável e intolerável. Por isso, um dos últimos textos escolhidos, e que foi também um dos últimos que escreveu, é aquele em que ele, indignado com a recusa de atribuição de uma pensão de viuvez à mulher de Salgueiro Maia, explode de indignação quando vê o mesmo governo (com Cavaco Silva a primeiro-ministro e Jorge Braga de Macedo a ministro das Finanças), atribuir, sob proposta do alto comando das Forças Armadas, uma pensão vitalícia a dois ex-agentes de PIDE, por “serviços distintos prestados à Pátria”. O texto que escreveu no “Público”, verdadeiro grito de revolta e nojo contra o governo e os comandos militares, valeu-lhe uma acção por crime de injúrias, interposto pelos chefes militares - “cobertos de medalhas de feitos heróicos que o país desconhece”, como então disse. E, para suprema vergonha das Forças Armadas, que assim o quiseram, a acção prosseguiu mesmo após a sua morte – contra os herdeiros, os filhos – terminando com uma honrosa e insólita absolvição post-mortem. Pois que, como escreveu Manuel Alegre, mesmo então ele estaria lá em cima, algures, a “desinquietar a ordem estabelecida das coisas”.

Hoje, no dia 12 de Junho de 2020, quando se completam exactamente cem anos sobre a data do seu nascimento, recordo, com imensa saudade, os muitos 12 de Junho passados na casa dos meus pais na Travessa das Mónicas, à Graça, em Lisboa, nos jantares de anos dele, nas noites em que Lisboa festejava o seu Santo António. Aquela foi sempre uma casa escancaradamente aberta: de reis a pedintes, de governantes a loucos militantes. E, por expresso desejo e prazer dom meu pai, também uma casa aberta a todas as gerações: os amigos dos filhos eram amigos dele também e ali se juntavam muitas vezes no dia dos seus anos, antes de partirmos, os mais novos, para a vadiagem do Santo António nas ruas de Alfama, logo ali abaixo.

A última vez que o vi foi no Hospital de Santa Maria, onde estava internado: entrava e saía e eu não conseguia perceber ao certo qual o mal dele - tanto mais que, duas vezes pelo menos, saíu sozinho e sem autorização do hospital, voltando para casa e declarando-se bom de saúde. Dessa vez fui-me despedir pois ia partir em reportagem para o deserto do Sahara no dia seguinte. Perguntei-lhe se queria que lhe trouxesse alguma coisa de lá, uma rosa do deserto, talvez. Sorriu, com um ar triste e disse:

- A única coisa que queria agora era sair daqui e beber um chá num terraço.

- Pai - respondi-lhe - Estou a acabar a construção da minha casa no Alentejo. Daqui a três meses, tem um terraço para beber um chá.

Saí dali apreensivo, porém o médico sossegou-me: não ia acontecer nada nos tempos mais próximos. Enganou-se, todavia, pois ele morreria estava eu em pleno deserto e só, por sorte e no dia seguinte, soube da notícia e foi preciso uma incrível conjugação de vontades para que conseguisse chegar a Lisboa mesmo em cima do enterro. Mas ele não conseguiu chegar a tempo ao terraço, pois, como escreveu o Garcia Marquéz, não se morre quando se quer, mas quando se pode.

Porém, aqui estamos e graças à iniciativa do Centro Nacional de Cultura, de que foi um dos fundadores e dirigentes, a recordá-lo neste 12 de Junho, o dia dos seus 100 anos. E isso, só por si, significa que Francisco de Sousa Tavares não viveu em vão.



De Maria Andresen Sousa Tavares recebemos o esclarecimento sobre a compilação – dos “Escritos Políticos”, que publicamos 
aqui.

 

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