"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Pedras no meio do caminho

XI. Ainda a queda de um anjo…

O Morgado de Agra de Freimas, Calisto Elói, «naquele tempo, orçava por quarenta e quatro anos. Não era desajeitado da sua pessoa. Tinha poucas carnes, e compleição, como dizem, afidalgada.


A sensível e dissimétrica saliência do abdómen devia-se ao uso destemperado da carne de porco e outros alimentos intumescentes. Pés e mãos justificavam a raça que as gerações vieram adelgaçando de carnes. Tinha o nariz algum tanto estragado das invasões do rapé e torceduras do lenço de algodão vermelho. A dilatação das ventas e o escarlate das cartilagens não eram assim mesmo coisa de repulsão. Estes narizes, se não se prestam à poesia lírica, inculcam a serenidade dos seus donos, o que é melhor. Eram assim os narizes de José Liberato Freire de Carvalho e de Silvestre Pinheiro Ferreira. Quase todos os estadistas de 1820 se condecoravam com a rubidez nasal. Não sei que há nisto indicativo de estudo, gravidade e meditação; mas há o quer que seja. As restantes feições de Calisto Elói de Silos eram regulares, a não querermos encarecer a alta e brunida cara, que poderia servir de rótulo a um talento abalizado, se o inimigo da Lucrécia Bórgia não fosse, a meu ver, capacidade eminente, viciada pela educação e tradições de família. Excedia a estatura meã e era direito de pernas. No tronco havia tal qual inclinação, que denunciava o arqueamento da espinha por efeito da incansável leitura e minguado exercício. O que certamente o desairava era o traje. Calisto Elói vestia de briche da Golegã, e dos alfaiates de Miranda. A gola e portinholas da casaca eram sérias demais para estes tempos em que um homem se veste hoje à moda, e daqui a um mês corre o perigo de sair ridiculamente entrajado. Não se sabe a razão por que o morgado da Agra se afeiçoara às calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola. Vestira assim umas pantalonas em 1833, quando se matrimoniou com D. Teodora. Ou porque a esposa gostasse do feitio das calças, ou porque a moda se conservasse, mantida pelo fidalgo, na comarca de Miranda, o certo é que desde aquela época todas as pantalonas de Calisto foram talhadas pelas primeiras, e a abotoadura sempre aproveitada». É assim que conhecemos a personagem. Quando chegou a Lisboa, para tomar assento na Câmara do Deputados, era alguém que não destoaria muito de tantos dos seus colegas de S. Bento. Quando começou a pedir a palavra e a intervir, houve, no entanto, um sinal de alarme – um excesso de formalismo e a tentação de se exprimir a despropósito com citações e forçadas referências eruditas.  «Ora, Calisto Elói, sem embargo da seriedade e gentil compostura da sua pessoa, não podia de todo poupar-se ao riso de certas pessoas da plateia. Estava ali gente que o ouvira fulminar no Parlamento o teatro lírico, e nomeadamente a Lucrécia Bórgia. Estava quem se lembrasse daquelas calças de polainas assertoadas de madrepérola, e do farfalhoso colete, e das pantalonas axadrezadas do aljubeta Nunes & Filhos». E o tempo não facilitaria a sua vida. Agravou-se a tentação de citar, a propósito e despropósito. É certo que as vestimentas modernizaram-se, porque ficou mais distante de Miranda. Mas, ao riso que provocavam no início os seus barroquismos e fixações, sucederam os comentários e os segredinhos que ocorriam quando passava ou procurava evidenciar-se. E assim tornou-se um símbolo das más influências da capital. O facto de ter passado a apresentar-se melhor não melhorou as coisas, uma vez que todos perceberam que essa era uma consequência de ter encontrado uma viúva rica, bonita e conhecida. Tornou-se assim um anjo decaído. E, para efeito deste folhetim, juntou o seu nome aos exemplos enumerados. No mundo destes fantasmas, ficaram as citações abstrusas e a cegueira da ambição. E retemos o fio da meada, à procura de quem esteja a ponto de fazer parte desta saga…

Agostinho de Morais

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