"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Pedras no meio do caminho

XVIII. Um vaqueiro simpático

Eis um fantasma prazenteiro. Este pode ser encontrado amiúde onde menos esperamos. Apesar de ter sido criado no século XVI, continua a falar connosco e a dizer-nos algo que compreendemos.
 

 

Mestre Gil (“um que não tem nem ceitil e faz os aitos a el-rei”) criou-o em junho de 1502 para saudar o nascimento do futuro D. João III, a pedido da Rainha Velha, irmã de D. Manuel e viúva do Principe Perfeito. Mas a verdade é que este vaqueiro é símbolo de quem somos, ainda hoje. A ilustração de Roque Gameiro apresenta-nos quem não se coíbe de dizer o que bem lhe apraz, mesmo na presença da Corte em toda a sua pujança. Poderíamos lembrar-nos de Todo o Mundo e Ninguém do Auto da Lusitânia (que Almada Negreiros recriou como um diálogo de gémeos) ou do impagável Pranto de Maria Parda (que António Tabucchi simbolizou como o nosso picaresco), mas preferimos neste folhetim citar hoje a talvez primeira personagem do elenco vicentino. Pode dizer-se que o vaqueiro é uma síntese sábia e rica. Afonso Lopes Vieira reescreveu este monólogo do Auto da Visitação e quantos de nós dissemos de cor a sua versão atrevida, crítica e simpática. E recordamos Ruy de Carvalho, nos primórdios da televisão portuguesa, como homenagem à fundação do moderno teatro português. «Sete arrepelões me deram á entrada, mas eu dei uma punhada num de aqueles figurões. Porém, se de tal soubera, não viera; e, vindo, não entraria; e se entrasse, eu olharia de maneira que nenhum me chegaria. Mas, está feito, está feito; e, se se for a apurar, já que entrei neste lugar tudo me sai em proveito. Té me regala ver coisas tão formosas, que se fica parvo a vê-las! Eu remiro-as, porém elas, de lustrosas, a nós outros são danosas». 

Mas, continuemos a ouvir a toada do vaqueiro, sem papas na língua. «Seja que não seja, embora, quero dizer ao que venho, não diga que me detenho a nossa aldeia já agora. Por ela vim saber cá se certo é que pariu Vossa Nobreza? Crei' que sim, que Vossa Alteza tal está que de isto mesmo dá fé. Mui alegre e prazenteira, mui ufana e esclarecida, mui perfeita e mui luzida, muito mais que de antes era. Oh!, que bem tão principal, universal! Nunca se viu prazer tal! Por minha fé - vou saltar! Eh!, zagal, diz' lá, diz' lá:—saltei mal?» (…) E prossegue com desenvoltura: «Se agora vagar tivera e depressa não viera, maldito seja eu então se aqui a conta não dera de esta sua geração. Será rei Dom João Terceiro, o herdeiro da fama que nos deixaram, nos tempos em que reinaram, o Segundo e o Primeiro e ind'outros que passaram. Mas ficaram-me lá fora uns trinta ou mais companheiros, pastores, zagais, porqueiros, e vou chamá-los agora; eles trazem p'ra o nascido esclarecido, ovos e leite fresquinhos, e um cento de bolinhos; mais trouxeram queijos, mel - o que puderam… E ora os quero ir chamar, mas, por via dos puxões, agarrem os figurões p'ra gente poder entrar». 

Cabe neste ponto do folhetim explicar alguma coisa para que o leitor perceba do que se trata. Se ainda não compreendeu, o certo é que em cada capítulo há um pequeno segredo que só no final será revelado. Já percebeu que há fantasmas que se encontram e desencontram. Ainda ontem estávamos numa comédia de enganos e hoje encontramos um audacioso discurso. Porquê?

 

Agostinho de Morais

 

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