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As maravilhosas memórias do bambino Chico Buarque

O cantor revolveu o passado numa autoficção que é uma ótima novela e em que revela a marca que Itália deixou na sua arte musical.

Um regresso marcante de Chico Buarque à literatura. Na foto, Chico Buarque a mulher, Marieta Severo, durante o “segundo exílio” italiano em 1969.

De Chico Buarque (n.1944) sabe-se muita coisa, apesar de não ser pródigo em revelar a sua vida pessoal, mas dos tempos que viveu em Itália não se conhece assim tanto. Os que seguem a carreira do cantor e compositor têm uma noção de que foi nesse país que teve à conta do pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, um primeiro exílio a partir do ano de 1953. Dezasseis anos depois faria a mesma viagem, desta vez para um exílio político após a instalação da ditadura militar no Brasil. Se na primeira vez até compusera umas marchas, desta vez já é artista reconhecido e de sucesso, encontra-se com Toquinho e escrevem em parceria, bem como se rende ao mundo da canção italiano, com amizades que o ajudam a cimentar a arte musical. O segundo regresso italiano ao Brasil, antes da agonia do regime militar, em pouco tem a ver com o primeiro. Mais politizado, mais odiado e proibido pela ditadura, encontra num pseudónimo, Julinho da Adelaide, o subterfúgio para fugir à censura e tornar-se no Chico Buarque que hoje se conhece. É desse primeiro exílio entre 1953 e 1954 que Chico Buarque, agora na pele de escritor, regressa. O título é Bambino A Roma e segue-se aos livros a vários romances que lhe têm valido vários prémios, entre os quais o Camões, o PT e o Jabuti, e que lhe abriram uma carreira paralela à da música.

Este Bambino precede, cronologicamente, o anterior, O Irmão Alemão, em que o pai também teve um papel importante, pois é o relato da descoberta de um meio irmão. Recorde-se que Chico Buarque sempre dedicou uma parte da vida à literatura, tendo publicado uma novela desaparecida das livrarias em 1979, Fazenda Modelo, mas é no início da década de 1990 que o seu nome se firma literariamente, com uma sucessão regular de romances: Estorvo, Benjamim, Budapeste, Leite Derramado, sempre com grandes vendas.

O tema do seu mais recente livro nada tem a ver com os romances que tem publicado, registo que existia em O Irmão Alemão, que partilhava a autoficção e a ficção, mas a forma como Bambino A Roma é entregue ao leitor faz com que se o leia como se de um romance se tratasse. O autor começa, continua e termina com todos os ingredientes do género. Sabe-se que é a sua história enquanto jovem, revemo-nos nos ecos da sua biografia, mas o que se sente é a literatura. Chico Buarque está muito rodado no romance e daí que seja capaz de transformar uma sua memória numa espécie de romance. Além de um título muito bem achado, de uma fotografia na capa onde se lhe reveem os traços fisionómicos do rosto, o que se lê contém uma destreza literária que faz com que este livro ultrapasse a simples recuperação da memória. Nada que os autores clássicos não tenham feito antes de si.

Entre as perguntas que se fazem nas entrevistas aos escritores aquando da edição de novos livros há sempre uma fatal: O que há neste romance de autobiográfico? Desta vez, essa questão é supérflua, porque quase tudo tem a ver com Chico Buarque. Que, além do mais, sabe aproveitar as suas longínquas memórias, como uma deliciosa que é a tentativa de ensinar português a um amigo italiano através de uma marcha de Carnaval então famosa: “Tu pensi que cachaça è acqua”. A importância da música que deixou para trás não se fica por aí, pois de seguida recorda que ia com a mãe às Termas de Caracala ouvir óperas populares, mas não conseguia que nenhuma das árias se fixassem na sua cabeça porque a marcha da cachaça ocupava todo o espaço disponível.

Também se depreende neste relato como as suas letras que tanto agradam ao sexo feminino poderão ter a génese, pois faz o relato de um reencontro com uma jovem que lhe agradava, Sandrene, e diz que ela corava, mas vai mais longe, numa interpretação que daria uma boa letra de canção: “Ela sabia que ei gostava de vê-la corar e talvez tenha aprendido a corar de propósito”.

Se a música perpassa a maioria das páginas, não faltam outros acontecimentos: a morte de Estaline, o suicídio de Getúlio Vargas, os contos de Hemingway, a Livraria Hoepli e o mundo que davam a ler, o interesse pela arquitetura e pelo futebol – o primeiro ficou pelo caminho, o segundo manteve-se -, os malabarismos nas bicicletas… e, nas duas últimas páginas, ressurge em todo o seu fulgor o escritor. Uma folha imperdível de um lado e do outro, em que a autobiografia alcança o domínio do romance.


 


por João Céu e Silva in Diário de Notícias | 23 de setembro de 2024
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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