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Yayoi Kusama, a sua alma eterna
A arte de Yayoi Kusama (n. 1929), escultora, pintora, poeta, romancista, performer, artista universal de origem japonesa, chegou finalmente a Portugal por iniciativa da Fundação de Serralves.

"Je Cherche l’or du temps."
(Epitáfio por si escolhido para o seu túmulo)
André Breton
"Na busca da verdade tenho caminhado
num labirinto que até a luz das estrelas poderia perder de vista."
Yayoi Kusama, poema “Longínquas são as estrelas que brilham na busca da verdade.”
A arte de Yayoi Kusama (n. 1929), escultora, pintora, poeta, romancista, performer, artista universal de origem japonesa, chegou finalmente a Portugal por iniciativa da Fundação de Serralves. Dificilmente classificável o seu trabalho tem sido considerado entre a arte conceptual com uma componente feminista e autobiográfica, o minimalismo, o surrealismo, a Arte Bruta, a Pop Arte e o expressionismo abstrato.
Quando nos parecia já ter sido feito e dito tudo na arte contemporânea, ou na arte “tout court”, Kusama deslumbra-nos com a expressão única, multifacetada, galáctica, minimalista, barroca, enfática, poética, sublime, parecendo esgotar todos os adjetivos que virtualmente a possam qualificar, criando uma visão do universo que não é a réplica daquela que conhecemos e a ciência incansavelmente tenta decifrar. Um universo feito não apenas à sua medida, mas à medida de um humano que partilha verdadeiramente o seu destino com o Cosmos e com o divino que nele se espelha.
Às suas assumidas fontes: Mondrian, Ben Nicholson, Henri Moore, Calder, Mark Tobey, Georgia 0’Keeffe, ou outras como Jackson Pollock ou de Kooning, grandes expoentes da arte contemporânea, ela acrescentou o capítulo da sua invenção fulgurante e visionária, destinada a anunciar uma nova era da criação.
Do real para o símbolo, do íntimo para o imenso, a artista parece devolver-nos em primeiro lugar um sentimento de universo que partilha com as suas mais ínfimas criaturas, com as coisas e os elementos que configuram todas as originais pulsões e energias fundamentais e iniciais do Cosmos.
Yayoi Kusama, Let's Walk This Life, 2016, Pintura, pormenor.
União de um “sentimento oceânico” e de um misticismo que traduz a sua plena fusão com o real e o irreal que é a sua mais pura essência. Uma conjugação de mundos terrestres e celestes, do cósmico e do que poderíamos considerar o divino que preside à vida que ela observa, numa perceção imaginativa, misto de contemplação e de vidência, como se antes de mais tudo passasse pela sua própria experiência que começa pela noção dos grandes ritmos, fluxos, movimentos cósmicos como as correntes marítimas que observou em 1957 no seu voo do Japão para os Estados Unidos (cf. as pinturas The Sea (1957), Pacific Ocean (1960).
Yayoi Kusama, The Sea, Pintura da série Infinity Net, 2018.
São estes grandes modelos da natureza que inspiram a Kusama a sua visão do infinito, certamente o aspeto mais emblemático da sua criação e o seu contributo maior para a arte contemporânea. E simultaneamente o imenso, o infinito equacionam-se com tudo o que é mutável que varia e floresce precariamente no instante. As efémeras iluminações das nuvens e os reflexos e as sombras que animam a natureza nas suas tensões inesgotáveis. Entre a visão da profundidade dos ritmos oceânicos e a expressão do que tem sido definido como as “qualidades metafísicas” da natureza que se evidencia nas célebres pinturas que emergiram na década de 60 Infinity Net em que dá forma a pulsões vitais na sua imemorial luta contra a morte e a desintegração, anunciada em Transmigration (2011).
Yayoi Kusama, Transmigration (2011), detalhe.
Ao mesmo tempo revela-se nas colagens dos anos 70 a sua atenção às criaturas do mundo subterrâneo e aquático, simbolizando a sua condição mortal e o seu místico élan para a ressurreição aspetos que em toda a sua obra, quer na escultura, quer na pintura se afirmam.
Yayoi Kusama, The Moment of Regeneration, 2004.
Do Caos a uma ordem oculta
A atração pela morte na arte de Kusama não pode senão significar o profundo encontro do significado último que esta encerra, como limiar da revelação ou do conhecimento total que justifica a vida. A vida que explode nas suas miríades de mutações e de expressões na série mais prolífica da sua arte: My Eternal Soul (2009-2021) representada na exposição e que representa nas 900 pinturas que a compõem, os temas recorrentes e interrelacionados do seu trabalho: o infinito, a acumulação, o bio cósmico, a conectividade radical e a morte, reunindo aos emblemáticos padrões de bolas e de redes, formas orgânicas da terra e do mar juntamente com frágeis impressões digitais, rostos e olhos humanos.
Yayoi Kusama Women Who Went Sightseeing to the Universe, 2017, pormenor.
Do caos à ordem oculta que preside à natureza, da paleta de uma euforia exuberante e vulcânica à melancolia perante a ameaça da incerteza e do nada sugeridas na acumulação e na desordem aparente.
Yayoi Kusama, Pound of Repose, Pintura, 2014, pormenor.
A obra de Kusama apresentada em Portugal na magnífica exposição da Fundação de Serralves, abre novas perspetivas à decifração não apenas do seu trabalho, mas do sentido da arte contemporânea que nos convida a reler e do binómio ocidente/oriente a que ela dá um novo sentido. Encarnando não apenas a diluição destas fronteiras, mas de todas as fronteiras, inclusive as do masculino e do feminino, do real e do imaginário, do espírito e da matéria, da tradição e da modernidade, ao encontro da lição da alquimia já postulada por Breton, na incessante busca da alma eterna da vida. Marcando realmente, precisamente por isso e pela consciência disso, uma fronteira em relação a tudo o que a antecede e abrindo novas perspetivas para o futuro.
Yayoy Kusama Infinity Mirror Room.
Depois de Kusama, o que falta ainda dizer em arte? Essa a pergunta que poderá ocorrer-nos perante o genial, inesgotável caleidoscópio das suas formas que não imitam a vida, mas que são elas mesmas o simulacro de uma realidade outra, latente naquela que conhecemos, mas infinitamente mais viva, mais carnal, mais exuberante, mais real. E simultaneamente eternamente fugitiva, irreal, no jogo de espelhos que a duplica até ao infinito. Para a aprisionar e para a libertar.
Na interação absoluta, na conectividade entre todas as formas vivas, entre uma natureza que se humaniza e um humano que nas suas formas e no seu amor se dilui, sem se aniquilar, nesta transfusão apocalíptica e genésica de almas e de corpos não translúcidos, que nos faz evocar, dele se demarcando, o mito dos “Grandes Transparentes” de André Breton, celebrado por poetas como René Char ou Octávio Paz. Com uma opacidade bem material, neste amor à escala global que se funde com a poesia e a liberdade em que nos envolve e hipnoticamente nos seduz, o que falta então dizer? Somos tentados a afirmar: nada!
YAYOY KUSAMA: 1945 - HOJE, Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, Porto, até 29 de setembro.