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"Branca de Neve e Outros Dramalhetes". Nuno Carinhas desconstrói contos de fadas e coloca o público a pensar
A peça devolve aos contos de fadas a estranheza, a poesia e a resistência que estiveram sempre escondidas nas versões tradicionais. O Teatro Nacional São João acolhe um espetáculo que desconstrói o familiar e que põe o público a sonhar.
A nova produção do Teatro Nacional São João (TNSJ), “Branca de Neve e outros Dramalhetes” parte da Gata Borralheira para abrir caminho às restantes fábulas de Walser - e fá-lo questionando a tradição.
O encenador Nuno Carinhas assume, desde o primeiro ensaio, que não haveria espaço para uma leitura clássica do conto: “Achávamos que não íamos seguir os contos tradicionais. No fundo, não era disso que se tratava."
A peça estreia na quinta-feira, 20, e estará em palco até 14 de dezembro. O encenador diz que nela “há muito teatro dentro do teatro” e que as pessoas devem “deixar os tiktoks e assistir à cultura”.
Entre referências à pintura de Paula Rego, jogos de poder, ambiguidades do masculino e do feminino e uma cenografia inspirada no surrealismo de De Chirico, a nova encenação de "Branca de Neve e Outros Dramalhetes" procura “retirar o público do quotidiano contaminado pelos ecrãs” e mostrar a atualidade da escrita de Robert Walser.
Uma das figuras centrais desta abordagem é a própria Gata Borralheira, apresentada como uma personagem dividida entre o deslumbramento e a prisão. “Há uma espécie de castração da liberdade da Gata Borralheira porque, quando aceita o que o príncipe dá, o que ele pede é obediência. Se não era livre antes, continua a não ser livre”, sublinha o encenador.
O ângulo de abordagem da encenação coloca os príncipes num estado de fragilidade e iniciação, enquanto as protagonistas femininas surgem como forças de resistência.
O espetáculo também dialoga com universos plásticos. Os figurinos e a construção visual das irmãs da Gata Borralheira partem diretamente da obra de Paula Rego. “Para mim, sempre foi óbvio que ela estaria na pintura da Paula Rego… As irmãs eram essas bailarinas negras, perversas, intemporais”, explica a figurinista Letícia dos Santos.
A cenografia, por sua vez, assume uma geometria “walseriana”, onde nada é totalmente claro. “Não se define o que é frente, o que é verso, o que é interior ou exterior. Instalamos essa dúvida permanentemente”, acrescenta o cenógrafo Pedro Tudela, evocando o espaço metafísico de "Quirico", o pintor.
Outro elemento que surpreende é a personagem do próprio “conto”, uma espécie de entidade que aparece em cena para manipular e provocar as personagens. “O extraordinário é que ele, sendo o conto, tem imensa liberdade. Ele corporiza a oferta que vem deixar - e a personagem não reconhece o seu criador”, diz o encenador, que destaca o carácter desta figura.
Já sobre a atualidade dos contos de fadas e do machismo estrutural neles presentes, o encenador admite a pertinência da leitura contemporânea, mas insiste que Walser já o fazia antes de nós: “Talvez este gesto de emancipação das mulheres seja singular no momento histórico. Mas elas lutam sobretudo pelo presente, não por um futuro a planear.”
O trabalho de desdobramento dos atores, que interpretam múltiplas personagens ao longo do espetáculo, reforça a dimensão meta-teatral. “É sempre muito interessante lembrar que o teatro é feito de companhias. Esses atores desdobram-se numa universalidade monumental de personagens”, diz Nuno Carinhas.
A encenação integra ainda um momento em vídeo, reservado à parte da Bela Adormecida, onde uma única atriz interpreta todas as personagens que reclamam por terem sido acordadas. Uma escolha que, apesar de rara no trabalho do encenador, reforça o efeito acumulativo do delírio walseriano.
A relação com o TNSJ é também afetiva. “É um privilégio. Sou recebido por pessoas que conhecem o meu trabalho, e isso faz com que tudo flua. Estou há dois meses fora de casa, mas é tão gratificante”, confessa o encenador.
Quanto ao público, o convite é claro, ainda que sem imposições: “O teatro que vale a pena é o que nos retira dos meios que nos contaminam todos os dias. Aquele que nos devolve o sonho, o prodígio, a capacidade imaginativa. É para isso que o teatro existe.”
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in Renascença | 19 de novembro de 2025
Notícia no âmbito da parceira Centro Nacional de Cultura | Rádio Renascença

