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"Natal em Goa" - Conto de Natal
Da autoria de Guilherme d’Oliveira Martins, é o Conto de Natal que a equipa do CNC partilha com todos, com os votos de um FELIZ NATAL e ótimo ANO NOVO.
NATAL EM GOA
Não há melhor momento para compreendermos o tempo nas suas diferenças senão quando as comunidades e as pessoas se encontram nas suas celebrações. As heranças culturais manifestam-se na memória de cada um e na sua partilha. E quando se lembram as festividades ou as evocações, podemos compreender o que chamamos cultura, que não é mais do que o modo como vivemos a vida e lembramos aqueles que amamos e que fazem a nossa lembrança. Não há modo de compreender a realidade que somos sem o entendimento das raízes e das tradições, que permanentemente mudam e que se compõem sempre de mil diferenças.
Lembremos o Natal. Se olharmos o mundo global, há muitas formas de o viver. Por muito que as mentalidades e as convicções mudem, o certo é que elas representam uma ligação às origens e ao caminho de onde vimos. Os cristãos celebram o nascimento da vida e essa partilha tem um sentido próprio que se projeta na procura da universalidade da dignidade das pessoas. Sente-se esse encontro quando, por exemplo, na Velha Goa três religiões se encontram, nas suas diferenças, para celebrar… Hindus, cristãos e muçulmanos trilham caminhos diferentes para compreender a mesma humanidade, por isso cultuam como memória viva de todos Francisco Xavier…
Pode haver diálogo entre religiões diferentes? – pergunta Percival a seus amigos Manu e Abdool, numa das ruas de Nova Goa, próximo da Igreja da Senhora da Conceição. A conversa é recorrente, já tantas vezes debateram esse tema, e a verdade é que se vem cimentando a amizade entre eles. Longe de serem repetitivos, a verdade é que os três têm estudado o tema, fora de dogmas ou de preconceitos, pois sabem que a reflexão emancipa os espíritos, por isso fora da má língua gostam de pensar.
Manu, com a vivacidade que lhe é habitual, avança:
- Infelizmente, há uma grande resistência na resposta a tal pergunta. Há tendência para responder sem cuidar das consequências. A maior parte das vezes, vê-se por aí que não há diálogo, mas monólogos. A virtude de uma verdadeira conversa está na capacidade de avançar num confronto que progride nas dúvidas, nas hesitações, na busca genuína do que carece de esclarecimento. Para haver diálogo é preciso sabermos colocar-nos no campo do outro e desenvolver o raciocínio num constante vai-e-vem: sim, não, nim…
Percival pergunta: - Talvez uma religião como o hinduísmo com complexas narrativas e múltiplas componentes exija essa atitude, sob pena de não se entender nada? Por isso, Manu tem-nos ajudado muito ao levar-nos a Brahma, Vishnu e Shiva, a criação, a preservação e a destruição, numa permanente renovação, que nos conduz à metamorfose da natureza.
Abdool compreende e aceita que esse esforço tem sido muito positivo, pois a cada passo se abrem janelas novas. - É preciso estudar o porquê de cada narrativa. Cada fábula representa a procura de nos situarmos na nossa própria experiência.
Mas em que medida essa atitude pode ajudar-nos? -pergunta Manu. - Não só devemos pôr-nos no lugar do outro, mas devemos também saber ver o mundo às avessas e de pernas para o ar. Somos, a cada passo, nós e o outro que também está dentro de nós.
De súbito, Percival lembra a missa do galo na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, a Mãe que cuida do Menino, que se faz lembrar aqui no alto. Estamos a passar por lá. – O galo é um bom símbolo. Quem acorda e é acordado? É a manhã que desponta. O galo dá o sinal, mas é a natureza que desperta e é o Menino Deus que nasce.
Mas somos nós que despertamos. E o Menino é o símbolo vivo da humanidade que nasce e permanentemente renasce. Os Magos, os pastores, a banda popular e os animais que povoam a paisagem são testemunhas do tempo que reúne as diversas gerações. Que significa tudo isto? – pergunta Percival. Esta é a representação do mundo. Que estranho cenário, tantos a presenciar um acontecimento inusitado. É o mundo que muda, que nasce, que se preserva e que se destrói e transforma, para cada um e para todos.
Abdool interrompe e recorda os momentos diferentes de oração durante o dia. É um modo de nos integrarmos na misteriosa realidade que ocupa os cientistas e os teólogos. E Manu fala das narrativas antigas dos livros sagrados e da representação da vida na difícil relação com o tempo, o presente, o passado e o futuro, pois a renovação faz-se até ao infinito: - Repararam que cada um no presépio representa à sua maneira a passagem do tempo e o mistério fundamental da sobreposição de problemas e preocupações. O pastor preocupa-se com a cria que acaba de nascer, a banda preocupa-se em não desafinar, os Magos fazem cálculos sobre o que os céus revelam…
Inesperadamente, Percival pára e como se tivesse uma revelação dirigiu-se aos dois companheiros: - Já repararam nós os três aqui somos os verdadeiros símbolos do espírito Natal… Manu retorquiu de imediato: - Como assim? Estás a ir longe demais… Eu diria, do Trimurti… Abdool sem perder tempo, acrescentou: - Não compreendo essa conclusão…., eu diria, do Profeta…
Perante a reação intempestiva dos companheiros, Percival explicou-se… - Não julguem que enlouqueci. Falo do espírito de Natal, como sinal de convergência e de luz. Manu e Abdool viram o que lhes estava mais próximo. E eu também. Afinal, não falámos do presépio como um lugar de encontro e de diferença, que converge? E como nas nossas ideias, o que sobe converge. Que tem a ver o modesto pastor com o Mago vindo da Pérsia? Que tem a ver o músico com o camponês? E que estranho este facto de uma estrela de luz indicar um objetivo. E lembrei-me da fábula do velho pai que legou a seus filhos incrédulos, na hora da morte um tesouro escondido no jardim da casa… E procurei ligar o que nos une: a consciência das ideias e do espírito que partilhamos, quando admiramos o nosso Francisco Xavier… Sempre associei o espírito do Natal a essa procura do tesouro escondido. O Menino Deus é o tesouro escondido. Afinal, na fábula não havia nenhum tesouro físico e palpável. O verdadeiro tesouro estava na sabedoria com que cada um dos filhos se dispôs a viver. Ora, nós, há muitos anos que nos encontramos para conversar, trocando ideias, procurando em cada momento compreender melhor o que cada um vai fazendo e descobrindo.
- Mesmo assim não compreendo! – respondeu Abdool. – E eu também não – completou Manu. – De facto, encontramo-nos para conversar, mas que tem isso a ver com sermos símbolos do espírito de Natal?
Percival comentou. - Já repararam que estamos à nossa maneira à procura de um mesmo tesouro. E essa demanda faz-se tentando colocar-nos no lugar do outro, simultaneamente descobrindo as dúvidas e contradições que permitem encontrar um caminho que permita conhecer melhor os disparates do mundo e as suas congruências.
Abdool acrescenta: - Sim, é de um tesouro que se trata. O tal pai sábio não fez mais do que revelar que a chave da aprendizagem e do conhecimento está em nós, na recusa da indiferença e no trabalho árduo de recusar o conformismo. Percival talvez tenha razão. Mais do que a descoberta de uma abstração, o que importa é ir além da informação e do conhecimento até à sabedoria.
Percival: - Vejam bem, entenderam-me, é isso que eu designo como espírito de Natal. Persistir em seguir o caminho da luz. E de que luz falo? De aprender a saber, a saber fazer, a viver com os outros e a ser.
Manu dispôs-se então a lembrar a complexa narrativa dos textos antigos. Só compreendendo um caminho de encontros e desencontros, de confrontos e tréguas, de soluções imaginosas que ligam a razão e o sonho é que poderemos pensar, sentir e logo existir. Reparem que a verdade não está em nós mas no que procuramos. E em cada fragmento de verdade a que chegamos estamos a progredir, como em cada passo dado pelos pastores, pelos camponeses, pelos músicos e também pelos interrogadores dos astros que vieram de lugares distantes. Manu estava satisfeito pois tinha algo para dar através das velhas narrativas do hinduísmo.
Percival, Manu e Abdool continuaram a conversa animada. Estavam a chegar, de novo, a um entendimento, mas não a um resultado. Os pontos de vista eram diferentes, mas todos procuravam um tesouro. O espírito de Natal significava, afinal, que cada um à sua maneira eles participavam de um presépio vivo. Eles eram como os Magos que o forte construído para controlar o rio Mandovi evocava, mas também como os pastores, os camponeses e os músicos… E aquela luz bruxuleante que iluminava o Menino que nascia era o tesouro que eles iam descobrindo.
Guilherme d’Oliveira Martins

