Música
Cascais recebe “Amor e Paixão” em tempos de guerra no recital de piano de Teresa da Palma Pereira
De Chopin e Liszt, com o seu herói Mazeppa, a Rachmaninov e Katchaturian, passando pelos espanhóis Turina e Falla, o programa apresentado no Centro Cultural de Cascais, destaca temas em que “o amor e a paixão” são um universo individual alternativo “ao ódio e à intolerância”.

10 Mai 2025 | 17h00
Quando a tensão entre os povos aumenta, “importa afirmar a universalidade dos sentimentos heroicos e contrariar o esmagamento dos indivíduos pelo coletivo”, afirma Teresa da Palma Pereira.
“Cantos de Amor e de Paixão” é o título do programa que a pianista Teresa da Palma Pereira irá apresentar em Cascais no próximo dia 10 de maio. Com um repertório que privilegia temas românticos de libertação individual contra a opressão – como o poema sinfónico Mazeppa, de Liszt – a pianista contrapõe o amor e a paixão “ao ódio e à intolerância que prevalecem no tempo de guerra e de destruição do indivíduo que o mundo está a passar”.
É este o fio condutor dos recitais de 2025 da pianista de Lisboa que é diretora artística da Academia de Música Flor da Murta, em Paço de Arcos. O programa inclui obras de Lully, Mozart, Chopin, Liszt, Turina, Falla, Glinka, Rachmaninov e Khachaturian (ver Programa do recital em Cascais).
“Quando a tensão no interior das sociedades e entre os povos aumenta tragicamente, é importante ressaltar a universalidade dos valores humanos espelhada na música”, afirma Teresa da Palma Pereira. “A expressão artística desta cultura partilhada, com a dimensão poética e sentimental que o período romântico sublinha, são um bom ponto de partida para a cultura de diálogo entre os diferentes povos”.
No programa dos recitais, Teresa Palma Pereira parte de um compositor barroco, Jean-Baptiste Lully, com uma dança inaugural – Gavotte em Rondeau – seguida do Rondo em ré maior de Mozart, pequena obra-prima dançante em que o compositor expõe a leveza, o jovial virtuosismo e as súbitas mudanças emocionais tão características do seu estilo. O recital prossegue com várias peças de Chopin, nas quais se espelha a mesma leveza e graciosidade ao serviço da fantasia e do lirismo. A primeira parte termina com Franz Liszt, três peças em que a paixão romântica encontra narrativas de amor ao piano. Em “Mazeppa”, o espírito apaixonado expressa-se pela intensidade e força utilizadas para ilustrar esta história de paixão, luta e sobrevivência do herói polaco do poema de Victor Hugo.
Na segunda parte do concerto a paixão ganha contornos diferentes com a tradição flamenca espanhola e com os ritmos das danças ciganas que Joaquín Turina e Manuel de Falla trouxeram para o piano. Viaja-se depois para a romantismo melancólico e decadente da Mazurca de MikhailGlinka, compositor russo percussor da criação de uma identidade nacional na música erudita do grande império asiático. Esta mesma identidade está presente na escrita pianística de Rachmaninov. O recital encerra com a poderosa e contagiante Toccata do arménio Aram Khachaturian, regressando ao tema do amor e da paixão na celebração do que é mais profundamente humano.
O concerto terá lugar no próximo dia 10 de maio, sábado, às 17:00, no Centro Cultural de Cascais. “É sempre um privilégio atuar em Cascais – é uma vila cheia de vida, com um público atento e caloroso”, afirma Teresa da Palma Pereira. “Este concerto é uma oportunidade para criar uma ligação com as pessoas que me ouvem através da música, principalmente num tempo em que precisamos, mais do que nunca, de reencontrar sentido e beleza naquilo que nos une”.
Teresa da Palma Pereira já atuou em países como França, Itália, Bélgica, Holanda, Hungria, Suécia, Brasil e China. Conta com cinco CD's editados. Atualmente é diretora artística da Academia de Música Flor da Murta, em Paço de Arcos. Desde 2018, é diretora artística do Festival Internacional de Piano de Oeiras, que este ano passou a integrar a European Festivals Association.
Programa de Recital de Piano
Teresa da Palma Pereira
Auditório do Centro Cultural de Cascais
Sábado, 10 de maio de 2025, 17h00
1ª Parte
J.B. Lully - Gavotte en rondeau (arranjo para piano )
W.A. Mozart - Rondo em ré Maior K.485
F. Chopin - Estudo op. 25, n. 1
Noturno op. 27, n. 2
Prelúdio n. 8
Estudo op. 25, n. 6
Valsa em mi menor op. post. B. 56
Estudo op. 10 n. 2
F. Liszt - “Au bord d’une source”
Soneto de Petrarca 123
Estudo Transcendental n. 4 “Mazzepa”
Intervalo
2ª Parte
J. Turina - Sacromonte de “5 Danzas Gitanas” op. 55
M. Falla - Dança Espanhola n. 1 de “A Vida Breve”
Cancion del Fogo Fatuo de “El Amor Brujo”
Danza de los Vecinos
Danza de la Molinera
(“El sombrero de tres picos “, aanjo. M, Falla)
M. Glinka - Mazurca em dó menor
S. Rachmaninov - Prelúdio op. 32, n. 8
A. Khatchaturian - Toccata
Notas de Programa
"Lo mismo que el fuego fatuo
Lo mismito es el querer
Le huyes y te persigue
Le llamas y echa a correr"
Este recital começa com a dança de Lully, numa transcrição para piano da famosa "Gavotte en Rondeau", atribuida ao compositor barroco francês, eternizada pela popular versão do violinista Willy Burmester.
Segue-se o Rondo em ré Maior de Mozart, pequena obra-prima dançante em que Mozart expõe, de forma brilhante, a leveza, jovial virtuosismo e as súbitas mudanças emocionais tão características do estilo do compositor, bem como belas texturas orquestrais que enriquecem a sua escrita para teclado.
Estas qualidades terão inspirado de forma profunda o romântico F.Chopin, que espelha esta mesma leveza e graciosidade ao serviço da fantasia e lirismo, no magnífico estudo op. 25, n. 1.
O programa continua com o igualmente lírico, introspectivo e comovente noturno op. 27, n. 2. Composto em 1836, faz parte do monumental conjunto de noturnos que define, como mais nenhuma obra, o estilo de Chopin. Tendo como modelo os noturnos do compositor irlandês John Field, estas obras apresentam uma magistral combinação de perfeição e belcanto de influência mozartiana e fluidez formal, liberdade rítmica e imaginação poética presentes na alma improvisatória do génio polaco.
A imaginação poética de Chopin condensa-se sobretudo nos breves momentos, como o famoso prelúdio n. 8, em que se transmuta em emoção à flor da pele. A angústia emocional dá lugar ao puro exercício de cor, texturas e imaginação sonora no estudo op. 25, n. 6, em que Chopin explora uma técnica inovadora ao serviço de um universo criativo único.
A emoção revela-se mais ligeira e volátil na elegante e, ao mesmo tempo, surpreendente valsa em mi menor.
Chopin atinge a máxima ligeireza no gracioso e desafiador estudo op. 10, n. 2 em que, mais uma vez, revoluciona a técnica pianística tal como ela era entendida nas décadas anteriores.
F. Liszt foi também um transformador da técnica pianística. A peça "Au board d´une source", parte do 1º livro dos "Années de Pelegrinage", caracteriza-se pela mesma leveza etérea do estudo op 10, n. 2 de Chopin. Aqui, no entanto, a ligeireza da técnica é combinada, de forma requintada, com a subtileza das harmonias, jogos de pedal e exploração do registo mais agudo do piano, de modo a contar uma história ou, na verdade, apenas descrever a alegria espontânea pela contemplação da frescura da água de uma nascente.
Se o piano de Chopin tem, mais do que nenhum outro, uma alma apaixonada, a paixão romântica torna-se amor místico e idealizado nos sonetos de Petrarca de Liszt. Hoje, escutaremos o Soneto de Petrarca n. 123, uma das três peças, pertencentes ao 2º livro dos Années de Pelegrinage, em que Liszt transformou os versos do famoso poeta italiano em imperscrutável narrativa de amor ao piano, naquilo que parecem longas improvisações vindas diretamente do coração.
O engenho técnico de Liszt traduz-se em peças como "Au board d´une source" mas também naquela que é a obra, por excelência, em que tentou explorar até ao limite esta faceta, os Estudos de Execução Transcendental, dos quais o mais célebre é o n. 4,"Mazeppa".
Em "Mazeppa", o espírito apaixonado expressa-se pela intensidade e força utilizadas para ilustrar esta história de paixão, luta e sobrevivência do herói polaco do poema de Victor Hugo.
A paixão ganha contornos diferentes quando se ouve como eco da tradição popular, neste caso a tradição flamenca espanhola, com o incontornável J. Turina que trouxe para o piano os ritmos das danças ciganas, como em "Sacromonte".
Ritmo e dança juntam-se para contar uma história de paixão trágica na ópera "A Vida Breve" de M. de Falla, da qual escutaremos a Danza Espanola n. 1, na sua versão para piano.
Segue-se a canção à qual pertencem os versos que iniciam este texto, a "Cancion del Fuego Fatuo", parte do bailado "Amor Brujo", em que Falla revela, por intermédio do canto cigano a intensidade apaixonada que permeia grande parte das suas obras.
O amor ganha contornos mais leves, um pouco jocosos e sarcásticos nas duas peças que se seguem. A "Danza de los vecinos" e a Danza de la Molinera" fazem parte do "Sombrero de tres picos", ballet que contou com figurinos de Picasso e em que a paixão e traição são contadas com uma generosa dose de humor e crítica social.
Viajamos para a romantismo melancólico e decadente da Mazurca em dó menor, de M. Glinka, compositor russo percussor da criação de uma identidade nacional na música erudita do grande império asiático.
Esta identidade está presente, também, na escrita pianística de Rachmaninov, juntamente com a sensualidade apaixonada dos cromatismos e a força expressiva instintiva do ritmo, ritmo esse que se torna telúrico, quase rude e, a espaços, jazzístico, na poderosa e contagiante Toccata de Khatchaturian, com que se encerra este recital sob o tema do amor e da paixão.