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Roteiros

Lisboa de Padre António Vieira, por Miguel Real

Não mais de 100.000 habitantes teria a cidade de Lisboa no tempo de Padre António Vieira. Não era ainda uma cidade moderna, mas não era já uma cidade medieval. A primeira caracterizava-se, como Paris, pelas largas ruas e pelos inúmeros e soberbos palácios; a segunda, constituía um amontoado de casario em torno de uma fortaleza ou castelo, rodeada de uma muralha defensiva.

Em Lisboa, no século XVII, palácios de grande porte existem poucos, para além do Palácio Real no Terreiro do Paço; ruas espaçosas para o trânsito dos coches só a partir do século XVIII, quando nasce a cidade pombalina. Mas é justamente no século XVII que a muralha medieval fernandina sofre os seus maiores rombos do lado ocidental, com a fundação do Bairro Alto de São Roque como novo bairro aristocrata da cidade, que os bairros de Santa Catarina, da Bica e de São Paulo se consolidam e que as antigas ruas medievais da “Baixa” se alargam. Neste sentido, a Lisboa do século XVII é uma cidade em mudança, descaracterizada do seu antigo poderio de cais imperial, uma cidade que vira perder os rituais majestáticos da Coroa, transferidos para Madrid. Não é uma cidade de palácios, mas de palacetes, que abundam na Costa do Castelo, nos arredores do Rossio e na linha que segue da Ribeira das Naus à Junqueira.

Cidade de menestréis medievais e de mercadores imperiais, Lisboa foi sempre uma cidade popular, não aristocrática. A cidade medieval encostava-se ao Castelo de São Jorge, debruçando o casario em contínuos anfiteatros sobre o Tejo. Entre as casas, como atalaias vigilantes, laranjeiras e limoeiros compunham os quintais das casas, por vezes uma figueira atarracada largava as suas folhas verdes sobre os muretes descaiados. A cidade imperial nascera junto ao rio, estendendo-se de Enxabregas e Alfama até à Junqueira. O Rei D. Manuel I trouxera a alcáçova ou cidadela real do Castelo para juntinho da Ribeira das Naus, dando assim origem ao Terreiro do Paço. No tempo de Padre António Vieira, Lisboa, não sendo medieval e ainda sendo imperial, é sobretudo uma cidade que, após a queda dos Filipes, visa modernizar-se. Uma cidade aristocrática, como Madrid ou Paris, pressupõe abundância de palácios e de jardins e de ruas largas por onde transitam com facilidade coches e carruagens. Se até D. Sebastião o aristocrata atravessa a cidade a cavalo, a partir de D. João IV o aristocrata atravessa a cidade de coche e, meu Deus!, em Lisboa os coches não podem passar na Rua Nova dos Ferros nem na dos Ourives da Prata, duas das mais importantes ruas da capital, só liteiras e cadeirinhas. Becos e fiadas de prédios são demolidos, alargando as ruas, arcaicas portas da cidade e parte da muralha fernandina são arrasadas, mesmo assim apenas passa um coche de cada vez, gerando os primeiros engarrafamentos de trânsito. O Senado da Câmara vê-se na obrigação de regulamentar as precedências: - quem entra pela rua tal vindo de cima tem prioridade sobre quem entra de baixo; este, faça o favor de recuar. Mas há problemas - deve a carruagem do Duque de Cadaval recuar frente a uma carroça de carrasco puxada por dois muares e um preto? Pode um marquês ter prioridade face a um duque? É, como se vê, uma nova mentalidade urbana e cosmopolita que se está formando em Lisboa, que se realizará em plenitude com as radicais alterações sofridas pela cidade no tempo do Marquês de Pombal. Com a introdução de coches em Lisboa, novas profissões nascem, o boleia (que ajuda o cocheiro na direção do coche, principalmente quando este é puxado por duas ou três parelhas de cavalos), o postilhão, que segue pendurado, pronto a resolver qualquer conflito ou a remover qualquer obstáculo. Em Lisboa, existem abegoarias, que fazem carroças, carretas, charruecos, enfim, carruagens simples, não coches forrados a tela e veludo, emoldurados a ouro e prata, assentos em cochim almofadados de penas de peito de pato patola, sistema de amortecimento nas rodas que suaviza o balancear. Os aristocratas encomendam-nos em Paris, vêm por barco, desmontados, são aparelhados peça por peça em Lisboa. É um sucesso. Quem os tem não mais anda a cavalo ou a pé.


Lisboa, hoje desenhada verticalmente ao Tejo, seguia então paralela ao rio, as ruas acompanhavam os declives naturais (as colinas, os vales). Mais do que outro símbolo urbano, eram as igrejas e conventos que marcavam os lugares de Lisboa. Dificilmente se daria um passo de uma rua para outra que não se deparasse com uma igreja, uma capela ou, na linha do horizonte, uma ermida. No lado oriental, a capela de Nossa Senhora da Penha velava pelos lisboetas; do ocidental, São Mamede, o santo abençoador dos rebanhos que pastavam às portas da cidade. Pela cidade, dezenas de igrejas, que nenhum bairro se sentia bairro sem que tivesse o seu santinho protetor, o seu pároco particular, que batizava os meninos, casava os jovens, consolava os adultos e amortalhava os velhos no caixão. As casas dificilmente ultrapassavam os três andares, todas elas com quintais, algumas com curtos jardins, cravadas umas nas outras compondo um labirinto de ruas e ruelas estreitinhas por que dificilmente passava uma carroça larga ou uma carruagem. Burros e escravos eram os grandes carregadores da cidade. Escravas carregadoras de água para as casas das suas senhoras alinhavam-se junto ao chafariz do Terreiro do Paço, encimado pela estátua de Apolo, o Belo,ou junto ao chafariz do Rossio, muito gaiteiro com a sua estatueta de Neptuno, Rei dos Mares. Do lado oriental, amontoavam-se frente ao Chafariz-d’El-Rei, à embocadura de Alfama. Daqui eram também as naus abastecidas de água, em barricas, não raro carregadas por antigos escravos mouros. Por vezes, quando os barcos se amontoavam no Tejo para a aguada, abriam-se uns arroios na terra e a água seguia direta para a margem do rio, onde era envasilhada e embarcada, ou montavam-se umas levadas pela junção de várias meias-canas e por aqui seguia contente a água limpa e fresca. O povo miúdo da Mouraria abastecia-se no Poço do Borratém, à entrada da Rua da Madalena, para onde, à noite, caminhavam os pés dos senhoritos finos, contemplando os tornozelos trigueiros das muy guapas espanholitas do teatro no Pátio do Borratém.


Pelo meio da manhã, negras calhandreiras atravessavam Lisboa com as calhandras (ânforas ou potes) à cabeça recolhendo os dejetos dos lisboetas, dirigiam-se em magotes esforçados para a zona da Boavista (perto do atual Cais do Sodré), a caminho de Santos-o-Velho, nos limites ocidentais da cidade, a despejar os seus potes no Tejo. De Alcântara a Monte Santo, o vento inchava umas nuvens de poeira amarelácea, que a brisa húmida do Tejo encorpava sobre a cidade, eram as pedreiras de Alcântara que abasteciam as obras de Lisboa, nelas trabalhavam escravos comprados nos mercados de Marrocos, antigos presos condenados às galés, embarcadiços caídos em desgraça. Nos velhos buracos da colina de Alcântara, que a escavagem e a explosão tinham aberto e explorado, agora sem uso, acolhiam-se escravos velhos ou defeituosos atirados para a rua pelos seus antigos amos, ali viviam em cavernas ou grutas, dando origem, mais tarde, ao famoso mocambo ou quilombo de Alcântara, coutada de negros fujões do século XVIII.

Atravessando o Rossio, três molequinhos negros gingavam os caniços das pernas, cabriolando à frente de dois pretos de músculos de bronze que suportavam à cabeça uma padiola com o corpo morto de um preto amortalhado num velho pano de baeta ou numa serapilheira esgarçada; atrás, uma, duas ou três mulheres pretas, enroladas em túnicas de pano-da-costa, pranteavam em altos gritos a perda do ‘Bastião, do ‘Ñgola ou do Manicongo, seguidos de quatro escravos jovens, um premindo um djambé de peito, outro bufando um cornetim de lata, o terceiro evocando os vodus de África e o último socando furiosamente uma “caixa” (um tambor). Era um funeral negro, não havia padre, raramente santa-unção. Por vezes, um frade apiedava-se daqueles corpos vocacionados para o inferno, aprontava-se ao cimo da escadaria de uma igreja, tapava o nariz ao cheiro malsão exalado do tronco dos pretos, e abençoava o cortejo. Este dirigia-se para a confluência entre São Paulo, Santos-o-Velho e São Bento, terrenos baldios habitados por pobre gente interiorânea chegada à cidade em busca de prosperidade e, rapidamente desiludida, transformada em canteiros, tijoleiros, pedreiros e carpinteiros da Câmara. Aqui ficava o Poço dos Negros, recolha obrigatória dos corpos mortos dos pretos. Ao Sábado, a Câmara despejava cinco baldões de cal a ferver sobre os corpos em apodrecimento.


No Terreiro do Paço, amontoavam-se ao sol da manhã os trabalhadores da Ribeira das Naus, de rosto encardido pelo lume das fogueiras gigantescas que ferviam caldeirões de água, cujo vapor provocava a concavidade das pranchas de madeira que compunham o casco dos barcos; calafeteiros limpavam as mãos sujas de pez a margaços de estopa, vinham em busca de sardinhas cozidas e peixe fumado, que tragavam em ruidosas mastigações, os lábios corrompidos de pústulas secas, oleados pelo quartilho de vinho tinto. Aproveitavam, deitavam-se sobre rolos de cordame velho esgarçado, sonicando uma meia hora antes que o sinete badalasse e o trabalho recomeçasse. No cais, aportavam os batéis, guarda-fatos alugavam os seus préstimos para o desembarque de mercadorias, que os primeiros galegos imigrados para Lisboa carregariam pela cidade. Lançavam-se pranchas oleosas entre o cais e os catraios ou mariolas, barquéus alugados para a travessia do Tejo em direção a Almada, mas também para o embarcadouro de Belém.

 
Ao fundo oriental do Terreiro do Paço, a caminho da Madalena, evolava-se um cheiro acre a sangue e carne fresca, era o açougue, dos curros saíam os gemidos das vacas, dos bezerros, dos carneiros, das ovelhas, mortos por um pontifim aguçado espetado até ao coração, sacavam-se-lhes as peles, depositadas em grandes tanques, de cheiro fétido, para começo da curtição, e esquartejavam-se os corpos, separando a carne dos ossos, que, resticulados de sangue e tendões, eram arrastados em padiolas, acompanhados de matilhas de cães ladrando, e deitados ao Tejo. A caminho da Sé, para além da embocadura da Igreja da Madalena, procuravam as hospedarias os estrangeiros ou os antigos colonos regressados do Império. Era a área das estalagens e hospedarias. Senhores finos e poderosos, não – esses iam para o Rossio, para a Estalagem Nova, de criadagem com libré. Pela Madalena, também, entre azinhagas sombrias e ruelas malcheirosas, rescendendo ao ardor nojento de peixe podre, acolhiam-se os bordéis de meretrizes, breve transferidos para a Rua Suja, uma viela mesmo à beirinha do novíssimo Bairro Alto.


Do lado ocidental do Terreiro do Paço, para a zona de São Paulo e Boavista, onde as calhandreiras de manhã tinham despejado os seus potes, malandrões de bacamarte ou arcabuz ofereciam, à tarde, os seus préstimos a donos de burros e cavalos velhos, matavam estes com um tiro de balázio na cabeça e queimavam o corpo. O dono, ameigado pelo animal, pagava e afastava-se, recusando contemplar o derradeiro olhar do seu animal, e os malandrões, velhacos, disparavam pólvora seca, fingindo que o matavam, e mal o cliente se afastara o suficiente, atiravam o cavalo ou o burro ao Tejo, afogando-o. Prolongando o edifício do açouge em direção ao Tejo, no final da atual Rua da Madalena, ficava a Alfândega, catorze casarões, enormes, sólidos, por onde transitava a mercadoria vinda do Império, sobretudo caixotes de açúcar, fardos de peles, varas de pano, rolos de fumo (tabaco) e sacas, barricas e cestas de especiarias. Da Alfândega saíam os grandes proventos que alimentavam a Casa Real e o Senado da Câmara de Lisboa. Pela Alfândega passava a totalidade das exportações de Lisboa para os longínquos lugares do império – cubas de farinha, tonéis de azeite ou de vinho do reino, balsas de sal, barricas de bacalhau, arcazes carregados de trajos europeus, caixões com louça vidrada do reino, baús pesados de papel, tinteiros e tinta. Aos portões da Alfândega, magistrados de beca preta esvoaçante, amarrotada na rabeira, discutiam com arrais e capitães de navios de longa barba marítima, sopravam estes um cachimbinho de louça, alimentado pelo tabaco da Bahia; mercadores alemães e ingleses disputavam carregamentos vindos do Brasil ou da Índia, que seguiriam para a Europa. Funcionários régios redigiam as “relações”, a partir das quais seriam aplicadas as taxas e calculados os proveitos.

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Do Terreiro de Paço ao Rossio, não havia caminho direto ou rua direita. As ruas corriam paralelas ao Tejo. Entre estas, salientavam-se a Rua Nova dos Ferros – rua de compras de material e mercadorias, de e para o trabalho -, e a Rua dos Ourives da Prata – rua das compras refinadas. Perto destas, estava nascendo a Rua dos Remolares, rua da moda no século seguinte, que, substituída Madrid por Paris na admiração da nobreza, receberá os figurinos parisienses da moda, onde jovens fidalgos estanciarão longas horas, suspeitando ver, quando as meninas descem dos coches, depondo o sapatim de pele de gamo no tijolo da rua para visitar as lojas, a brancura de leite de um calcanhar sob os folhos de rendas graciosas.

Cristãos-novos criptojudaicos amontoam-se na Rua dos Ourives da Prata, entra o cliente ao sábado pela porta semiaberta da venda e é recebido pela mulher do dono, de trajes brancos lavados, mantéu na cabeça, alega ter o seu marido ido visitar um cliente importante – eu espero, adverte o cliente, não vale a pena, meu Senhor, defende a mulher, o caminho é comprido, o fim afastado, pode ser que meu marido por lá pernoite, com este tempo nublado certamente pernoitará, eu mesma o aconselhei. À noite, roubada ao escuro, a matula acesa é depositada dentro de um caldeiro, cerradas as portadas de angelim da janela, não vá algum familiar da Inquisição suspeitar da existência de liturgias judaicas, e a reza do sahabat continua.
Se no Terreiro Paço dominava o Palácio Real, com o Torreão do Terzi encostadinho à água, onde D. João V agonizará entrevado cerca de dez anos no leito, no Rossio, segunda grande praça da cidade, não existe edifício único dominador. A norte, estabelecendo de certo modo o limite de Lisboa, a Casa do Senado da Câmara e o Palácio dos Estaus, antigo palácio de acolhimento de embaixadas estrangeiras doado por D. João III ao Tribunal do Santo Ofício, dirigido pela Ordem dos Dominicanos. Aqui se encarceram judeus e heréticos, homossexuais e lésbicas, ciganos e blasfemos, velando-se pela santa pureza de Portugal. Perto, a Igreja de São Domingos, comprida e baixa, donde partiam os autos de fé. A seu lado, entrando pela atual Praça da Figueira, levantava-se a mole do grande hospital de Lisboa, o Hospital de Todos-os-Santos, que será consumido pelo fogo em 1750. Perto do Senado, o segundo grande chafariz de Lisboa, com a estatueta de Neptuno a encimá-lo, como referimos. Do lado sul, dando origem ao dédalo de ruas que levavam ao Tejo, casas de habitação e uma arcaria, onde se iniciava a Feira da Ladra, posteriormente exilada para a atual Praça da Figueira.
 


Do vale do Rossio, avistava-se o Castelo a oriente e, a ocidente, o Mosteiro dos Trinos ou da Trindade, o Convento do Carmo e a Igreja de São Roque dos jesuítas. A este, saindo do Rossio, avistava-se o Colégio de Santo Antão dos Jesuítas, posteriormente transformado no Hospital de São José. O alcantilado entre o Rossio e o Convento do Carmo era então quase intransitável. Para se ligar a Baixa ao Alto de São Roque e à Trindade, a Câmara acabara de abrir a estrada Nova do Almada, que atalhava a subida antes feita a partir da Rua do Alecrim. Do mesmo modo, arruavam-se os terrenos da Cotovia, em cuja quinta homónima descansava o Padre António Vieira entre as suas viagens, posteriormente transformada pelo Marquês de Pombal no Colégio dos Nobres, e, já no século XIX, na Escola Politécnica. Desde a primeira metade do século XVI, a ermida de São Roque, templo expurgador da peste, fora entregue à Companhia de Jesus, que aqui levantara a imponente Igreja da Ordem, no entanto sempre popularmente conhecida por São Roque. O Bairro Alto de São Roque nascera da venda de um vasto terreno pertencente à viúva de um judeu que fugira do Reino na segunda metade do século XVI. Mais tarde, os irmãos Andrade tinham arruado esse terreno e ali começaram a nascer, fora da cidade, atraídas pelo sopro do ar puro, em contraste com o ar poeirento e pestífero da Baixa, pequenas quintas e solares, que cavavam cisternas de água para abastecimento próprio. Água fresca e ar puro todo o ano fizeram do Bairro Alto a zona aristocrática da moda na segunda metade do século XVII e todo o século XVIII. Cada palacete levantado rodeava-se de casinhotos rasos para a criadagem, mais ruas se abriam, competiam-se em preço elevado os terrenos inclinados para o Tejo, debruçados sobre o casario de Santa Catarina, de moradias burguesas, habitadas por antigos capitães da Índia, regressados enriquecidos (os capitães regressados pobres compravam casas de uma-águas rés-vés às muralhas do Castelo, tem-te-se-não-cais sobre o corrido de casas de Alfama) e o barraquio de casinhotos de madeira das Bicas, a Grande e a Pequena, habitadas por marinheiros de má-sorte que a fortuna desventurara, sobrevivendo da caça aos polvos e da apanha de bivalves entre os escolhos de Santos a Alcântara. Atrás dos jovens aristocratas do Bairro Alto, subiram Lisboa as rameiras, abrindo alcouces finos e bordeis de ralé numa azinhaga afastada, logo designada pelos frades de Rua Suja. Abrindo o Bairro Alto para os terrenos baldios da Cotovia e da ermida de São Mamede, desenhou-se a Rua Formosa, rua fina e endinheirada, onde, a meio, levantará palacete o tio Carvalho, lente de Coimbra e cónego da Patriarcal, legado em herança ao sobrinho preferido, Sebastião José de Carvalho e Mello, futuro conde de Oeiras e marquês de Pombal, que aqui viverá cerca de trinta anos.


Do lado ocidental da cidade, as pedreiras de Alcântara abasteciam Lisboa. Do lado oriental, os fornos de cal e de carvão dos galegos abasteciam-na destes dois produtos. Porém, carvão havia sempre pouco, lenha muito menos, e os navetas inglesas supriam a carência transportando nos porões montanhas de carvão de Manchester. Aproveitavam e supriam outra grande carência de Lisboa, a de farinha branca, o trigo, de que se confecionava o pão comido pelos desembargadores, os advogados, os juízes, os condes, marqueses e duqueses, os físicos, os mercadores ricos, que o povoléu de Lisboa entretinha-se com nacos de pão “escuro”, de cevada, centeio e mesmo de aveia. O Senado da Câmara, inspecionando a sujidade de Lisboa, atravessada de vinte em vinte anos por epidemias de “peste” (nesta designação acolhiam-se todas as doenças de fácil contágio), decidira limpar as duas grandes praças uma vez por mês, eram percorridas por uma vasta carroça carregada de pipas de água, que ia entornando o líquido pelo chão de terra e assentando a poeira. O chão de muitas ruas fora recentemente tijolado (coberto com tijolos grandes, de fabrico rude), um progresso relativamente ao século XVI, e as fachadas das casas rebocadas e caiadas, ainda que algumas de cores garridas, a maioria compunha um reticulado branco que sugava o calor do sol para si, aquecendo o interior escuro e frio. No chão das ruas abria-se ao meio uma concavidade, para onde se deitavam os dejetos da lida da casa, que os cães, os porcos, os patos e as galinhas iam tragando. O resto, levava-o o vento e arrastava-o a chuva para o rio. Fino e polido, o Senado da Câmara, constituído por corregedores, desembargadores e outros doutores, presidido por um aristocrata, acabara de decidir que galinhas, galos e coelhos, sim, patos e porcos, não, estes não podiam circular livremente pelas ruas de Lisboa, teriam de ser presos nos chiqueiros e nas capoeiras; multa ao morador e confisco vivo do animal, que seguia para o açougue. À noite, Lisboa era uma mancha de breu escuro, salpicada pelas lamparinas dos portões das igrejas e dos conventos e pelas vigias de azeite de baleia ou banha de borrego dos nichos das Nossas Senhoras. No Tejo, a bombordo e estibordo, as lanternas de óleo de peixe marcavam a presença dos barcos ancorados. Nos palacetes mais vistosos, brandões alumiados a pez ardiam toda a noite. O Senado da Câmara desconfiava da iluminação noturna da cidade, propícia a assaltos, confessava em édito: o transeunte, no escuro, colava-se a paredes, arcadas e becos, fugindo da manápula atrevida do assaltante. Por via dos assaltos noturnos, a Câmara lançou na rua os quadrilheiros, bandos de quatro polícias que atravessavam a cidade, iluminados por archotes, sulcando as botifarras no chão, avisando a sua chegada pelo barulho e pelo clarão de luz.

 Palácios de grande porte, em Lisboa, dois ou três, para além do Real, que D. João IV retocara aqui e ali, sem grandes alterações. Restaurada de fundo fora a Capela Real, encostadinha ao Palácio, onde Padre António Vieira pregará, silhares novíssimos de azulejos, retábulo novíssimo, tribuna real e púlpito novíssimos. Ao fundo da Rua do Alecrim, levantava-se o Palácio dos Braganças, e junto ao Tejo, após a Ribeira das Naus, o Palácio dos Cortes-Reais. Na Anunciada, o Palácio da Anunciada, e, depois, inúmeros palacetes, novos no Bairro Alto, arcaicos, apodrecidos, de paredes ressumando água e salitre (que o dinheiro das Índias já se fora e o do Brasil ainda não chegara) na Costa do Castelo, Santa Luzia e na Sé. No final do século, cria-se a moda das quintas solarengas à Junqueira e a Belém, onde a nobreza estancia no verão, praticando a arte de bem cavalgar a toda a sela nos picadeiros.

Lisboa, mais do que uma cidade devota, era uma cidade supersticiosa. Os templos pululavam, uns provindos do fundo dos tempos, como o de São Vicente de Fora ou a Sé, ou a capelinha da Nossa Senhora da Saúde, às portas da Mouraria, virada para a Rua Nova da Palma, ou a Capela de Santo António, juntinho à Sé; outros, reconstruídos, como as igrejas de São Nicolau, N. S. do Loreto, N. S. da Encarnação, São Martinho e São Miguel. Para as igrejas e conventos vinha madeira de lei do Brasil, troncos ciclópicos aplainados, que não cabiam nos navios, presos por uma cordoaria resistente à água e arrastados atrás dos barcos, flutuando, sulcando as ondas oceânicas.

Um feroz combate espiritual travava-se nos céus de Lisboa entre São Vicente e Santo António, o primeiro protetor da cidade desde os tempos de D. Afonso Henriques, pretensão do nosso primeiro rei para concorrer com Santiago de Compostela, devoção em vias de esquecimento no século XVII, o segundo acolhido no coração das gentes populares. Depositado pelos que o tinham achado, na capelinha de Santo António ia o povo procurar o que perdera, iam as donzelas casadoiras suplicar um bom casamento e as maridadas de mau casamento orar para que o santinho lhe mudasse a índole do esposo, de mau, calaceiro e vinhateiro o tornasse bom e trabalhador. Da luta popular entre São Vicente e Santo António, ganhou este, e a capelinha de Santo António, destruída pelo Terramoto de 1755, foi o primeiro templo de Lisboa a ser restaurado - os meninos da Madalena, da Sé, Santa Luzia e Alfama atravessavam Lisboa suplicando uma moedinha para Santo António e de sus o dinheiro apareceu para a reconstrução, ajudado pela contribuição do Erário Régio.

Pelos casaréus de Alfama a Mouraria vivia o povo pobre de Lisboa, em casas de duas-águas, chão de terra batida e duas divisões, a cozinha, que também era sala, composta em torno da lareira de cozer, e o aposento de dormir, pais e filhos na mesma câmara, separados, não raro, por um pano de chita velha pendurado num cordel, que unia parede a parede. Na sala-cozinha, escanos de sentar e recostar, a trempe da sopa e dos guizados, uma mesa encostada a um canto, que os filhos armavam sendo horas de refeição (ainda hoje se diz “pôr” e “levantar a mesa”); na sala de dormir, palha pelo chão ou peles de boi, um enxergão de folhelho ou de estopa (colchões de lã ou de penas eram reservados para os grupos sociais mais poderosos), a cobrir o corpo malcheiroso uma manta grossa de lã mal cardada, pasto abundante de pulgas e percevejos. Uma vez por mês, as mulheres mais salubrosas, compravam raminhos de arruda e braçadas de caruma ou carqueja, transportadas em carroças da mata de Benfica, e fumigavam a casa, abençoando-a com nove rezas a São Roque dos pestíferos e a Nossa Senhora do Socorro das famílias desamparadas. Meninos órfãos, fugidos ou abandonados, infestavam a cidade em bandos, dormiam nas valadas junto ao Tejo, de dia roubavam fruta às colarejas e caramelos de gengibre aos confeiteiros; cansados de cabriolarem malandrecamente pela cidade, arraiavam à porta traseira dos conventos à hora da partilha do bodo diário, uma malga de sopa quente de farelo, uma escudela de couves cozidas com um pano de toucinho e um naco de pão escuro. Vinho, era vedado; água, se quisessem, tomassem o caminho da fonte, que as pernas fizeram-se para andar. A Misericórdia abarrotava de crianças desprotegidas e a Câmara, abonada com contributos de beneméritos, levantara um albergue para crianças desvalidas juntinho à ermidinha da Glória, nas traseiras de São Roque. Lisboa do século XVII era uma cidade sem loucos públicos, amarrados nas caves, acorrentados nos sótãos ou aprisionados nas capoeiras dos quintais. Pela cidade, viúvas ricas, aconselhadas pelos cónegos, transformavam os seus casarões em Casas de Recolhidas, solteiras enganadas e abandonadas pelos masmarros dos marinheiros, mulheres desamparadas, tias avelhadas, viúvas desprotegidas – eram as Recolectas, de regime conventual, todo entregue ao Senhor, mas de vida laica. Dos fundos das casas, dormindo nos saguões, nos socavãos, nas alfurjas, rente à casa da lenha e à casa do carvão, viviam os escravos negros, mão de obra para todo o serviço doméstico.
À noite, tocadas as Ave-Marias, quando Lisboa adormecia ao sono justo do trabalho e da oração, emergiam os manicongos negros, as moçambicas escravas, reuniam-se nos becos, chispavam fogueiras, tagarelavam na sua língua africana e, ao som do atabaque e do djambé, dançavam rezando o samba lundu, de pernas abertas, braços frenéticos e peito ao léu, ansiando que o vodu protetor lhes cavalgasse o corpo – era a Lisboa negra, uma ralé escrava e canalha, que falava um português de boca empastelada mas cujo trabalho, ontem como hoje, sustentava a cidade, das obras públicas às aguadas para casa, dos carregos de lenha à britagem da pedra.

Miguel Real

 
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