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"D. Manuel chega a rei por uma carambola inacreditável de mortes e de não nascimentos"

Faz segunda-feira 500 anos que morreu o mais poderoso dos monarcas portugueses, senhor de um vasto império e de grandes riquezas e inspirador da arquitetura manuelina. O seu biógrafo, João Paulo Oliveira e Costa, explica a ascensão e o reinado de D. Manuel I, que foi também um grande reformista.

João Paulo Oliveira e Costa fotografado na Academia de Marinha, em Lisboa. Professor na Universidade Nova, viu agora reeditada a sua biografia do rei D. Manuel I. [© Rita Chantre / Global Imagens]


Em tempos chamou-me a atenção que D. Manuel I, de Portugal, era o primeiro monarca na história que conseguiu ter, em simultâneo, exércitos em quatro continentes: África, Ásia, Europa e também América. Isso sintetiza o pioneirismo de Portugal e o poderio deste rei, na passagem do século XV para o XVI?

Sim. O pioneirismo indiscutivelmente. Portugal desencadeia um processo novo na história, que é o princípio da globalização. É o que nós chamamos os Descobrimentos. E Descobrimentos no sentido de que quem navega descobre e quem acolhe também descobre. O espanto, a admiração foi sempre recíproca. Ora, neste sentido, o facto de serem os portugueses os pioneiros deste novo movimento à escala planetária fez com que D. Manuel I fosse o primeiro monarca, de toda a História, que tivesse simultaneamente os seus oficiais, às suas ordens, em quatro continentes e em três oceanos diferentes. Porque a natureza do seu império também é diferente da maior parte dos impérios que tinham existido, alguns dos quais muitíssimo mais extensos, mas que não tinham esta dinâmica. É um rei muito poderoso, não pelas terras que domina, mas pelas rotas marítimas que controla.

Este rei sucede a D. João II e à partida não era destinado a monarca. D. Manuel I é um mero primo de D. João II. Ainda por cima um primo de um ramo da família que foi reprimido seriamente porque, em tempos, tentou desafiar o poder do rei. Como é que se explica a chegada ao trono?

D. Manuel I chega a rei por uma carambola inacreditável de mortes e de não nascimentos. Nós falamos muito das mortes - morreram os irmãos todos mais velhos dele. Morreram os primos todos, mas também ainda beneficiou de que o príncipe D. Afonso, o herdeiro do trono que morre também, esteve oito meses casado e não engravidou a mulher, que o rei D. João II esteve casado uns 20 anos e só teve um filho da mulher, e que o próprio D. Afonso V só teve um filho varão que foi D. João II, porque à morte de D. João II se tivesse irmãos ou sobrinhos eles teriam sucedido no trono. Portanto D. Manuel I não beneficiou só dos que morreram, mas também dos que poderiam ter nascido e não nasceram. Há de repente um afunilamento, um estreitar da linha principal da família real que vai beneficiar D. Manuel I, um homem discreto e que, ao contrário do irmão D. Diogo, nunca conspirou contra o rei.

D. João II está convicto quando vai buscar D. Manuel, duque de Viseu e depois de Beja, para a corte, para ser herdeiro, após a morte de D. Afonso e não conseguindo legitimar, também, um outro filho que tinha, D. Jorge?

Não há convicção nenhuma. D. João II resistiu, nunca convocou cortes para jurar um herdeiro. O rei adoece por alturas da morte do filho. Torna-se evidente, ou torna-se muito expectável que o rei não venha a ter mais filhos e, portanto, de vez D. Manuel emerge como o último neto do rei D. Duarte vivo. É verdade que ele, depois da morte do príncipe D. Afonso, está mais vezes na corte, mas, por exemplo, não acompanha o rei ao Alvor, quando o rei está já a morrer e fica antes no Alentejo. A relação entre D. João II e D. Manuel nesse tempo é uma relação tensa, mas não há qualquer confronto entre os dois. Pelo contrário, há um respeito enorme de D. Manuel pelo rei. Há um esforço sim do rei, durante muito tempo, a contrariar que seja D. Manuel o herdeiro, depois, aparentemente, no último testamento, quando está a morrer, diz que sim.

D. Manuel é referido sempre como um rei riquíssimo. E a primeira ideia que temos é que essa riqueza decorre, da viagem de Vasco da Gama à Índia e das especiarias. Há outras fontes de riqueza?

D. Manuel I é, para já, o senhor do açúcar. Porque ele era senhor da ilha da Madeira e o açúcar madeirense, quando D. Manuel I é rei, vale 5% da receita da Coroa. Portanto, imagine-se para um duque, quando era só duque de Beja, o valor que isso não tinha no seu orçamento. Mas o lucro mais extraordinário e a fonte de riqueza primária que vem desde D. Afonso V, que já tinha enriquecido D. João II, e que tinha permitido uma política mais centralizadora e de maior controle da nobreza e que D. Manuel I vai continuar a desenvolver, plenamente, tem que ver com o ouro da Mina. O ouro é uma matéria-prima que chega e é amoedada, que nunca se estraga pelo caminho, ao contrário da pimenta que pode apodrecer, e que tem um custo barato porque beneficia de um diferencial entre a economia euro-asiática e da África subsariana. Ao contrário das especiarias, que são um negócio que dá mais receita, mas dá menos lucro, porque tem muita despesa associada, todo o envio das armadas. Porque a especiaria, ao contrário do ouro, é um produto caro, porque está dentro do mesmo sistema económico euroasiático em que estão os portugueses, e porque houve a resistência das redes mercantis muçulmanas instaladas no oceano Índico, que obrigaram a que este negócio das especiarias - que os portugueses desenvolvem com os seus próprios aliados, que entretanto criam na Índia, que é o rei de Cochim - tenha que ser feito em ambiente guerreiro. E isso tem um custo elevadíssimo. Tem um custo elevadíssimo para a Coroa. Portanto, D. Manuel I era um rei riquíssimo, o primeiro rei do ouro. Aliás, é muito provável que o impacto do ouro da Mina na economia portuguesa tenha sido maior do que o impacto do ouro do Brasil no tempo de D. João V, porque o país era muito mais pequeno, do ponto de vista do número de pessoas e do ponto de vista da sofisticação da sociedade.

É ouro da Mina que paga o esplendor da arquitetura manuelina?

Exatamente. Nós falamos do Manuelino porque de repente durante o reinado deste monarca há uma intensidade de obra pública excecional, que tem toda um certo nível de decoração artística e que tem também o emblema do rei, ou seja, a Esfera Armilar e a Cruz de Cristo. Ora esta intensidade de obra edificada desde Trás-os-Montes ao Algarve e às ilhas só se explica pelo ouro da Mina.

Rei rico e poderoso que nunca foi à guerra. Como se explica?

Porque consegue sempre manter a paz na Europa, particularmente com Castela, e porque é um rei administrativo. Porque ele, apesar deste seu empenho no Ultramar, é, indiscutivelmente, muito virado para o seu próprio país. É o maior reformador desde D. Dinis e não haverá outro reformador antes de D. José e do Marquês de Pombal. A primeira coisa que nos apercebemos é que enquanto Duque de Beja, entre 1490 e 1495, já se mostra um homem com iniciativa de reformar as cidades e as vilas que lhe pertenciam e a própria Ordem que dirigia. Há dois ou três anos em que está à espera de ser rei, pois apercebe-se que a crise de saúde do rei vai levá-lo ao trono, e sabe o que quer fazer. A prova é que sobe ao trono em outubro de 1495 e dois ou três meses depois já criou a Comissão para a Reforma dos Forais - que é uma comissão que vai trabalhar durante 25 anos. E ao fim de 25 anos a missão estava cumprida e os forais do reino estavam todos renovados. Renova as ordenações, e imprime-as - coisa que ainda não tinha sido feita antes - cria a leitura nova, que é , por assim dizer, um apanhado da documentação das chancelarias dos outros reis que ainda eram úteis, porque correspondiam a doações de territórios ou de benefícios que ainda estavam em vigor, cria uma reforma das comarcas ... só no tempo de D. Manuel I é que os pesos e medidas são uniformes para todo o reino. Torna o Estado muito mais eficaz, porque o torna uno. Ele é um centralizador, na senda de todos os reis da segunda dinastia, particularmente o seu antecessor. E sendo um centralizador unifica a máquina administrativa como nunca ainda tinha sido feito.

Faz segunda-feira 500 anos que morreu o mais poderoso dos monarcas portugueses.

 

É também no reinado de D. Manuel I que se dá o célebre massacre dos judeus em Lisboa, em 1506, em que o rei mostra mão dura com os culpados. Isso significa que D. Manuel era contra a perseguição aos judeus e percebeu o papel importante da comunidade judaica no país?

Sim. D. Manuel I herda um reino que tem uma comunidade judaica numerosíssima, na medida em que uma parte dos judeus que fugiu de Castela tinham emigrado para Portugal. E estava contente com a situação. E os judeus, apesar de algumas discriminações que sofriam, estavam bem integrados no país, à sua maneira e vivendo dentro de guetos que eles próprios desejavam para manter a pureza da sua própria sociedade. E, em 1496, quando está a negociar o casamento com a princesa D. Isabel, viúva do príncipe D. Afonso, é ela que diz que não vem para Portugal se Portugal tiver judeus. Os judeus tinham sido expulsos de Castela e ela por razões que não se conseguem perceber, mas que são contra a vontade dos próprios pais, insiste para D. Manuel I também expulse os judeus, para ela então se casar.

Os pais são os Reis Católicos. Não é uma exigência de Isabel de Castela e de Fernando de Aragão?

Não, porque os Reis Católicos estavam apavorados, dizem os próprios cronistas aragonese e castelhanos, com a hipótese de D. Manuel I, enquanto solteiro, viesse a casar com a Beltraneja. A Joana que tinha disputado o trono com Isabel 20 anos atrás. E, portanto, eles queriam muito que D. Manuel I se casasse. Os Reis Católicos querem que a filha venha, D. Manuel I quer casar e é ela que faz teima. É muito interessante como vemos muitas vezes na história a vontade própria do indivíduo criar condições tão estranhas. Diz-se que D. Manuel I era manhoso. E tentou aqui uma manha. Que é vamos lá convencer a princesa, mas não vamos perder o que eu tenho. Tenta transformar os judeus em cristãos-novos, através de um conjunto de artifícios. Perante isso, ela já vem, é o que ele desejou, e o que ele teve foi a esperança ingénua de que conseguiria fazer desaparecer, de facto, os judeus. Ou seja, ele dá ordens para que os cristãos-novos, além de não serem perseguidos, porque continuavam a ser judeus, não se casassem uns com os outros. Mas nem os cristãos-novos quiseram casar com os cristãos velhos, nem os cristãos velhos quiseram casar com os cristãos-novos.

Ou seja, ambicionou D. Manuel I uma espécie de integração.

Integração que, em duas ou três gerações, faria com que o judaísmo tivesse, de facto, sido esquecido. Agora, nem uns nem outros o queriam. E, portanto, resistiram e a verdade é que eles continuaram claramente separados e segregados, mesmo que convivessem nos mesmos prédios. A prova é que nesse massacre, de 1506, são mortos na rua mais de dois mil cristãos-novos e a haver algum morto cristão-velho ou foi por engano ou foi por vingança. D. Manuel I chegou a pensar destruir Lisboa mas depois lá se acalmou.

Sentiu uma ofensa à autoridade?

Também, claro. E, desse ponto de vista, uma frustração aos seus planos. Repare, quando isto acontece os cristãos-novos existiam há 10 anos. Portanto, o fracasso da política manuelina, no sentido da dispersão dos cristãos-novos entre os cristãos-velhos ainda não era visível. Ele tinha esperança de conseguir a sua ideia ingénua de que as pessoas se misturariam. E viu, seguramente, neste massacram um empecilho, um embaraço, a essa sua política integradora. E, portanto, chegou a pensar em salgar a cidade. Foi a rainha que amaciou o rei, que intercedeu por Lisboa junto do marido e conseguiu que D. Manuel I reconsiderasse. Porque D. Manuel I foi um rei que renovou extraordinariamente Lisboa e que, nessa renovação, tem duas grandes fases. Uma logo entre 1499 e 1505, que é a fase em que é constituído o Paço da Ribeira. E uma segunda fase quando ele regressa, a partir de 1510/11 e está aqui mais uns anos seguidos. Ele só sai de Lisboa por causa da peste. É o primeiro rei que também se fixa em Lisboa. Outro aspeto importante. A capitalidade de Lisboa, que era indiscutível enquanto cidade proeminente do reino, ganha uma maior visibilidade pela forma como ele cria um Paço junto das pessoas em vez de um castelo e porque reside permanentemente em Lisboa, anos a fio, por duas vezes. E cria toda aquela monumentalidade que existe em Belém também.

 

 

Há um terceiro casamento de D. Manuel, agora com Leonor, noiva do filho, o futuro D. João III. Isto tem a ver com jogos políticos com Carlos V, rei de Espanha e imperador romano-germânico, irmão de Leonor. Como é que afetou a relação pai/filho?

Afetou muitíssimo e, não há dúvida nenhuma que é um caso inusitado. De um rei, ainda mais viúvo, duplamente viúvo, com oito filhos, que de repente ainda casa com a noiva do filho. Isto é uma humilhação para o príncipe horrorosa. Isso sentiu-se, naturalmente, e D. João III ficou marcado por isso tal como a sua memória do pai. Aliás, afasta-se da corte. E o que é que ele podia fazer? D. Manuel I nem terá pensado no assunto. Fica viúvo e muito perturbado em 1517. O que é interessante é que assim que ele fica viúvo, e assim que a notícia chega aos flamengos, estes oferecem logo Margarida de Borgonha, tia de Carlos V, para casar. Ela tem quarenta e tal anos e ele também tem 48. Mas não pega. Não há razão nenhuma para que os flamengos estejam preocupados com a viuvez de D. Manuel I a não ser que haja um problema aqui na Península Ibérica. E o problema existia. Uma outra Joana, que é Joana a Louca, que é a rainha de Castela e está encarcerada. Foi encarcerada pelo pai, que entretanto morreu, Fernando o Católico. Está presa em Tordesilhas, mas é rainha de direito de Castela e de Aragão. Nunca governou e o filho vem à Península Ibérica e toma o poder.

O futuro Carlos V, nascido na Flandres e dono de várias coroas.

Exatamente. Porque Joana, no seu pouco discernimento, recusa-se a assinar documentos. Um reino que tem uma rainha que não quer assinar documentos tem de arranjar alguém que os assine. Carlos V vem e gera uma revolta. Há uma revolta que é a revolta dos Comuneros. Os Comuneros chegam a libertar Joana. Ganham o castelo de Tordesilhas e libertam-na. E enviam uma embaixada a Portugal. Imagine-se que D. Manuel em vez de estar casado com a irmã do imperador, Leonor, está viúvo. A tentação de ir ajudar a Joana a Louca seria enorme. E se D. Manuel casasse com Joana a Louca, e também se tornasse regente de Joana a Louca, Carlos V não governaria Espanha. E, portanto, o terceiro casamento de D. Manuel I é do interesse do rei porque, a certa altura, a relação dele com o filho está realmente crispada, mas é sobretudo do interesse de Carlos V.

Um casamento preventivo...

E que resultou. Porque em 1521, quando se dá a revolta dos Comuneros, e estes chegam a entrar em Tordesilhas e libertar Joana, falta-lhes um campeão. Vem cá então uma embaixada dos aristocratas castelhanos e D. Manuel I empresta-lhes 50 mil cruzados. E é com este dinheiro que é financiado o esmagamento dos Comuneros na batalha de Villalar, em abril de 1521, e que Carlos V conserva de vez a Península Ibérica. Os flamengos tinham razão. Para conservar o legado ibérico de Carlos V tiveram que sacrificar Leonor numa união, não com o primo da sua idade, mas com o tio que garantia que Castela ficava nas mãos dos Habsburgos.


por Leonídio Paulo Ferreira, in Diário de Notícias | 11 de dezembro de 2021
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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