Abecedário da Cultura da Língua Portuguesa
J. Joaninha dos olhos verdes
As “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett (1ª edição, 1846) são constituídas por quarenta e nove capítulos de um folhetim romântico, cuja originalidade está na linguagem comum que usa e na ligação entre o relato de uma viagem e a narrativa de uma história trágica sobre a guerra civil que dividiu o país de 1832 a 1834, e de que o autor foi protagonista.

E abre-se o romance: “Era no ano de 1832, uma tarde de Verão, como hoje calmosa, seca, mas céu puro e desabafado…”. Garrett mistura propositadamente as suas reflexões ao longo da viagem e o contar da narrativa, que ali teve lugar, no auge da guerra entre o Portugal novo e o Portugal antigo (com a presença de Joaninha, Carlos, Georgina, a Avó e Frei Dinis). E entre os episódios do romance, a viagem continua: “Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, atual possuidor e habitante do régio alcáçar, o Sr. M.P.” (Manuel Passos). E então: “comemos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a comer. Vieram visitas, falou-se de política, falou-se de literatura, falou-se de Santarém sobretudo, das suas ruínas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Enfim, fomo-nos deitar. Nunca dormi tão regalado sono em minha vida…”. Ontem, como hoje, a magnífica hospitalidade… E assim vida e literatura juntam-se naturalmente.
Mas retornemos à menina dos rouxinóis. «Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e expressivo que a palavra tem em português, mas era o tipo da gentileza, o ideal da espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezasseis anos, havia, por dom natural e por uma admirável simetria de proporções, toda a elegância nobre, todo o desembaraço modesto, toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da corte e da mais escolhida companhia vêm a dar a algumas raras e privilegiadas criaturas no mundo». O que a singulariza? «Os olhos de Joaninha eram verdes… não daquele verde descorado e traidor da raça felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate». (…) «O efeito desta rara feição, naquela fisionomia à primeira vista tão discordante, era em verdade pasmosa. Primeiro fascinava, alucinava, depois fazia uma sensação inexplicável e indecisa que doía e dava prazer ao mesmo tempo: por fim pouco a pouco, estabelecia-se a corrente magnética tão poderosa, tão carregada, tão incapaz de solução de continuidade, que toda a lembrança de outra coisa desaparecia, e toda a inteligência e toda a vontade eram absorvidas.Resta só acrescentar — e fica o retrato completo, um simples vestido azul-escuro, cinto e avental preto, e uns sapatinhos com as fitas traçadas em coturno». Camões também um dia disse: «Eles verdes são / e têm por usança / na cor, esperança / e nas obras não». “Minina dos olhos verdes, porque me não vedes”? E que maior saudade de um espírito senão a deste amor de Joaninha?